São Paulo, quinta-feira, 08 de março de 2007

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MARIA SYLVIA CARVALHO FRANCO

"Pauper ubique iacet"

"O POBRE é enjeitado em toda parte, disse a rainha Elizabeth quando, em viagem pelo reino, viu a multidão pobre se arrebanhando para vê-la e abençoá-la". Defoe, aí, cita Ovídio: "a riqueza é estimada, o dinheiro propicia honra e amizade; o pobre por toda parte é desprezado", em contexto que aproxima as inovações da soberana e as reformas de Augusto.
Elizabeth vencera os males políticos e sociais advindos de mudanças fundiárias com a expulsão de camponeses e despovoamento rural. O confisco dos bens da igreja e a alienação das terras do Estado também deslocaram massas, deixadas ao léu. A rainha, com astúcia e tolerância, atraíra as manufaturas flamengas em fuga do tirano espanhol, aduzindo riquezas e empregos.
Defoe colhe os frutos desse início manufatureiro, mas elude seu contraponto: a amplitude de áreas pastoris operadas com mão-de-obra reduzida. Seu efeito: pauperismo e repressão do povo transformado em [ ] mendigos e ladrões, sujeitos a cativeiro, flagelados, marcados a ferro, vendidos como animais. O limite etário para chicotear e ferretear era 14 anos; 18 para a pena de morte.
Sua crítica nega o viés econômico e caridoso na solução da pobreza e delinqüência, mas insiste em que estas não vêm do desemprego e salário baixo. Seu prisma é ético: os crimes do povo, "de onde deriva a pobreza, têm como fonte a luxúria, a indolência e o orgulho". A massa de pobres compõe-se de quem "não quer trabalhar", jamais de quem "não consegue trabalho". A seu ver, "o profuso e extravagante humor de nossa gente pobre, em comer e beber, a rebaixa, deixa os filhos nus e famintos", traz doenças e desastres. Mas, de permeio a esses preconceitos, vislumbra-se um dilema: a alternativa entre os grilhões sociais e o livre-arbítrio.
R. Burton, bem antes, não se ilude com a caridade humana: "Monstros que somos, cães, lobos, tigres, maus espíritos, demônios encarnados". Miseráveis e desprezíveis, "para enriquecer não nos importa sobre qual ruína nos erguemos, quem oprimimos e injuriamos para satisfazer nossa lascívia". Denuncia o descaso para com os Lázaros: "pauper ubique iacet".
Locke situa-se ao cabo dos abalos instauradores do mundo moderno. Suas teses naturalizam a propriedade como essência humana e formulam a epítome desse universo violento, encomiasta da operosidade e criminalizador da pobreza. Em seu desenrolar, sobrevieram séries de solavancos. Inovações tecnológicas, concentração urbana, vida e trabalho cruéis, desemprego, miséria, exploração infantil. Seguiram-se revoltas, cujo modelo é o Ludista a destruir máquinas e fábricas, preso, deportado, morto na forca.


sylvia.franco@uol.com.br

MARIA SYLVIA CARVALHO FRANCO
escreve às quintas-feiras nesta coluna.


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