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MARIA SYLVIA CARVALHO FRANCO
"Pauper ubique iacet"
"O POBRE é enjeitado em
toda parte, disse a rainha Elizabeth quando,
em viagem pelo reino, viu a multidão pobre se arrebanhando para
vê-la e abençoá-la". Defoe, aí, cita
Ovídio: "a riqueza é estimada, o dinheiro propicia honra e amizade; o
pobre por toda parte é desprezado", em contexto que aproxima as
inovações da soberana e as reformas de Augusto.
Elizabeth vencera os males políticos e sociais advindos de mudanças fundiárias com a expulsão de
camponeses e despovoamento rural. O confisco dos bens da igreja e a
alienação das terras do Estado
também deslocaram massas, deixadas ao léu. A rainha, com astúcia
e tolerância, atraíra as manufaturas flamengas em fuga do tirano espanhol, aduzindo riquezas e empregos.
Defoe colhe os frutos desse início
manufatureiro, mas elude seu contraponto: a amplitude de áreas pastoris operadas com mão-de-obra
reduzida. Seu efeito: pauperismo e
repressão do povo transformado
em [ ] mendigos e ladrões, sujeitos a
cativeiro, flagelados, marcados a
ferro, vendidos como animais. O limite etário para chicotear e ferretear era 14 anos; 18 para a pena de
morte.
Sua crítica nega o viés econômico e caridoso na solução da pobreza
e delinqüência, mas insiste em que
estas não vêm do desemprego e salário baixo. Seu prisma é ético: os
crimes do povo, "de onde deriva a
pobreza, têm como fonte a luxúria,
a indolência e o orgulho". A massa
de pobres compõe-se de quem
"não quer trabalhar", jamais de
quem "não consegue trabalho". A
seu ver, "o profuso e extravagante
humor de nossa gente pobre, em
comer e beber, a rebaixa, deixa os
filhos nus e famintos", traz doenças e desastres. Mas, de permeio a
esses preconceitos, vislumbra-se
um dilema: a alternativa entre os
grilhões sociais e o livre-arbítrio.
R. Burton, bem antes, não se ilude com a caridade humana: "Monstros que somos, cães, lobos, tigres,
maus espíritos, demônios encarnados". Miseráveis e desprezíveis,
"para enriquecer não nos importa
sobre qual ruína nos erguemos,
quem oprimimos e injuriamos para satisfazer nossa lascívia". Denuncia o descaso para com os Lázaros: "pauper ubique iacet".
Locke situa-se ao cabo dos abalos instauradores do mundo moderno. Suas teses naturalizam a
propriedade como essência humana e formulam a epítome desse
universo violento, encomiasta da
operosidade e criminalizador da
pobreza. Em seu desenrolar, sobrevieram séries de solavancos. Inovações tecnológicas, concentração
urbana, vida e trabalho cruéis, desemprego, miséria, exploração infantil. Seguiram-se revoltas, cujo
modelo é o Ludista a destruir máquinas e fábricas, preso, deportado,
morto na forca.
sylvia.franco@uol.com.br
MARIA SYLVIA CARVALHO FRANCO escreve às
quintas-feiras nesta coluna.
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