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São Paulo, terça-feira, 08 de abril de 2003

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ROBERTO MANGABEIRA UNGER

Mudar o Brasil de vez

Hoje ponho o noticiário de lado e trato de fatos -obscuros e até misteriosos- que decidirão nosso destino nacional. Para isso, é preciso armar o espírito contra algumas das obsessões que marcaram as disputas ideológicas dos últimos dois séculos.
Uma dessas disputas foi o contraste entre práticas de mercado e práticas dirigistas. Como explicar, à luz desse contraste, que as nações mais bem-sucedidas são aquelas que parecem manejar bem tanto o mercado como o dirigismo? Países atrasados costumam oscilar entre orientações liberais e estatizantes, com resultados igualmente ruins.
Os Estados Unidos, por exemplo, cedo se identificaram com a fé na anarquia organizada das forças de mercado. Ao se lançarem à guerra em 1941, entretanto, descartaram os preconceitos ideológicos. Reorganizaram toda a sua economia sob regime de coordenação planejada, porém flexível, entre o governo e o setor privado. Confiscaram grande parte da renda privada: a alíquota superior do imposto sobre a renda da pessoa física chegou a 92%. O resultado foi espetacular: em quatro anos, o PIB quase dobrou. É a implosão do debate ideológico: quem for bom de mercado, será bom também de estatismo. Mudará de modelo de acordo com as circunstâncias.
Três fatores são determinantes para explicar essa capacidade de usar bem qualquer modelo. O primeiro fator é o êxito em atenuar a contradição entre os dois imperativos básicos do progresso prático: a cooperação e a inovação. Qualquer atividade produtiva é cooperativa. O próprio mercado representa forma simplificada de cooperação entre estanhos; exige generalização da confiança. É preciso privilegiar as formas de cooperação mais hospitaleiras à inovação. Para que isso aconteça, impõe-se um segundo fator: difundir na população, tão amplamente quanto possível, o acesso às oportunidades educacionais e econômicas para poder aproveitar a energia de todos. E esses dois fatores são potencializados por um terceiro: atitude "despreconcebida", de experimentalismo irrequieto, que penetre toda a cultura e toda a sociedade.
O que tem isso a ver com o Brasil? A mudança mais importante ocorrida no Brasil nos último 40 anos foi a difusão, no meio popular, de nova cultura de iniciativa e de auto-ajuda. Mais pequeno-burguesa do que proletária, essa cultura procura, instintivamente, formas de cooperação abertas à inovação. Reivindica equipamento econômico e educativo. Rebela-se contra os dogmas. Falta-lhe, porém, tudo.
A tarefa pública mais importante a executar hoje no Brasil é ir ao encontro desse espírito, por todos os meios, inspirados em todos os figurinos, dotando-o dos instrumentos de que carece, resgatando-o do egoísmo familiar e da fórmula restritiva do pequena propriedade isolada e munindo-o de universo mais amplo de opções. A condição mais importante para que se dê esse encontro entre a nação e o Estado é a radicalização da meritocracia: a promoção dos esforçados e dos talentosos. Para isso, é preciso travar guerra incansável contra o privilégio, a influência, o favor e o nepotismo em todos os departamentos da vida nacional. Tratemos de descobrir ou de inventar as instituições e as práticas mais capazes de instrumentalizar a energia frustrada desse Brasil emergente. Tratemos de imaginar nossa própria grandeza.


Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.
www.law.harvard.edu/unger


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