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São Paulo, segunda-feira, 08 de setembro de 2003

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BORIS FAUSTO

Luzes e sombras no Prata

Volto de uma breve viagem a Buenos Aires com uma sensação positiva. Há mais ânimo nas pessoas, mais movimento nas ruas, lojas e restaurantes. Os catadores de lixo e os mendigos continuam existindo, mas parecem incorporados irremediável e infelizmente à paisagem social.
Mesmo uma rápida análise revela que muitos problemas permanecem, embora em condições menos dramáticas. Espera-se para este ano um crescimento de 5,5%, e a taxa de desemprego, segundo cálculos da OIT, deve ficar em 15% da população economicamente ativa. É bom lembrar, entretanto, que o substancial crescimento segue-se ao ano de 2002, em que houve crescimento negativo de 10,8%. Ao mesmo tempo, a expectativa de queda do desemprego, contrastando com a taxa média de 19,6% do ano anterior, deve ser matizada pelo fato de que muitos beneficiários de planos sociais são considerados empregados quando realizam alguma contraprestação aos benefícios.
O acordo com o FMI poderá sair, quem sabe, ainda nesta semana. As controvérsias giram principalmente em torno do nível do superávit primário, que a Argentina quer fixar em 3% durante os três anos de duração do acordo enquanto o FMI insiste na fixação desse percentual apenas para o primeiro ano -com revisão para cima nos seguintes.
Do ponto de vista político, o presidente Kirchner alcança níveis de aceitação muito altos, superiores a 70%, o que é em princípio auspicioso depois de um período de descrédito generalizado de toda a classe política. A popularidade do presidente decorre de uma combinação de fatores: a retórica no tratamento com o FMI; a corajosa disposição de reabrir a possibilidade de punição dos responsáveis pelas violências no curso do regime militar; o estilo pessoal de comunicação, lembrando um acessível senhor de classe média; o grande desejo da população de que, enfim, dias melhores estejam próximos.
Convém lembrar, porém, que Kirchner, eleito com apenas 22% dos votos, tem um problema talvez mais grave diante de si. Como diz o articulista Joaquin Morales Solá em "La Nación" (2/9), sua investidura ocorre quando o sistema histórico de partidos parece ter entrado em colapso. Daí a emergência de um novo protagonista na política argentina: as pesquisas de opinião e suas supostas verdades irrefutáveis, nas quais o governo se apoia.
Mas isso reforça as inclinações personalistas ou mesmo autoritárias do presidente, segundo alguns, e seu prestígio pode esfumar-se se a vida das pessoas não melhorar sensivelmente. Kirchner depende, pois, de uma base partidária mais sólida, representada principalmente pelo peronismo da Província de Buenos Aires, sob o comando de Eduardo Duhalde. Até aqui, Duhalde vem manifestando apoio ao presidente em meio às diferenças, mas bem sabemos como são comuns na vida política as revoltas da criatura contra o criador e vice-versa.
Em resumo, há luzes e sombras ao longo do caminho. À distância, cabe a nós desejar que as primeiras sejam preponderantes. Ou, em estilo mais popular fora dos campos de futebol, torçamos pela Argentina!


Boris Fausto escreve às segundas-feiras nesta coluna.


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