São Paulo, segunda-feira, 08 de outubro de 2001

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Dormindo com o inimigo

MIGUEL JORGE

A preocupação com os sequestros, um dos subprodutos da violência, é quase unanimidade nacional: atinge ricos, pobres ou remediados, crianças, jovens e velhos. À sua maneira, cada um procura explicar a explosão de violência no país -isso quando não tem suas próprias histórias para contar na condição de sobreviventes de experiências traumáticas.
Caetano Veloso, que teve seus instrumentos musicais roubados no Rio, denuncia a "cultura do desrespeito pelo convívio social". Para Patrícia, a filha de Silvio Santos que escapou de morrer no cativeiro e é evangélica como seu sequestrador, Fernando Dutra Pinto, Deus a salvou.
Seis turistas portugueses foram enterrados vivos na praia, em Fortaleza, depois de amarrados e de receberem tiros e facadas na cabeça, na jugular e na nuca. A cada dois dias, alguém é sequestrado no Estado de São Paulo para ser levado a um cativeiro ou a uma cabine eletrônica, onde é coagido a sacar dinheiro.
No dia do sequestro de Silvio Santos, pelo mesmo bandido que sequestrara sua filha, seis pessoas estavam sendo mantidas em cativeiro na Grande São Paulo (no primeiro semestre do ano, foram 41 casos, sendo 15 na capital e 26 na região metropolitana). Certamente esse índice deve ser o mesmo hoje, pois nada aconteceu para mudá-lo.
No mesmo dia em que o sequestrador de Patrícia Abravanel trocou tiros com a polícia num flat de Alphaville, em Barueri, matando dois policiais, do outro lado da cidade policiais resgataram do cativeiro um jovem de 19 anos -o caso mereceu cinco linhas em um jornal popular. Os sequestros relâmpagos não chamam mais a atenção da mídia, a não ser que algum fato específico desperte interesse num chefe de reportagem.
Nisso tudo, o mais perturbador é que a cada caso vamos perdendo o senso da realidade, e há até quem absolva seus sequestradores de um crime que, pela dramaticidade intrínseca, pela comoção que desperta na opinião pública e pela atmosfera de morte iminente da vítima, deveria ser muitíssimo mais combatido.
Dormimos com o inimigo e, quando conseguimos escapar, agimos como se voltássemos de um piquenique. Aparentemente, essa modalidade de crime virou algo tão banal como a "punga", o ato de bater a carteira do cidadão desprevenido. Ao voltar para casa, Patrícia disse que foi tratada como "uma princesa", jogou baralho com os sequestradores e fez o chefe do bando, Fernando Dutra Pinto, arrepender-se de seu ato.


A ineficiência da força policial indica uma sociedade que parece submissa à sanha dos criminosos


Estamos agindo com lassidão e indiferença ante a violência. Claro que aqui não se compara, de maneira nenhuma, o terror que se abateu sobre Nova York e que levou o mundo a um clamor como há tempos não se via. Ou ao choque causado na civilizadíssima Suíça quando uma discussão com um motorista de ônibus levou um tresloucado cidadão a matar 15 pessoas.
A tragédia das torres do World Trade Center acabou com 6.000 vidas em alguns minutos e foi transmitida para o mundo todo, via satélite. Com raríssimas exceções, a tragédia da nossa violência -que se repete a cada minuto, a cada hora, a cada dia- não merece nem um registro num programa noticioso de uma TV local.
Nossa lassidão e nossa indiferença em relação à violência é aquela relacionada à de toda hora e de todo dia. Simbolizam não a síndrome de Estocolmo -termo surgido em 1973, na Suécia, quando uma vítima de sequestro decidiu casar-se com seu captor-, mas refletem o quadro trágico em que vive a família brasileira, sem amplos horizontes sociais e econômicos e, além de tudo, atordoada e já quase anestesiada pelo medo espalhado pelo crime.
Jean François Steurman, no livro "Treblinka", sobre o Holocausto na Segunda Guerra Mundial, defendia a tese de que, no final do conflito, os judeus caminhavam serenamente para as câmaras de gás.
Guardadas as proporções, a ineficiência -aparente ou real- da força policial indica, na prática, uma sociedade que parece submissa à sanha dos criminosos. Perdeu a capacidade de reagir, de protestar contra o crime, de cobrar providências e de obrigar os agentes públicos a protegê-la -até bandidos inexperientes sentem que podem agir livremente.
Sem dúvida, estamos todos sós e, em termos de segurança pública, há que se começar tudo de novo. Não há muito tempo para isso. Logo, logo teremos de ficar presos em casa, dia e noite, para escaparmos dessa situação.
Nos Estados Unidos, nos anos 30, foi o clamor da sociedade que fez diminuir drasticamente os crimes ligados às organizações criminosas. Mais recentemente, em Nova York, o prefeito Giuliani mostrou que é possível vencer a guerra contra o crime. Meias reformas na polícia não adiantam mais, pois equivaleriam a não fazer nada.
Há que se pensar, desde já, de um lado, em termos de reorganização da polícia, de concentração de esforços, de programas de treinamento, de salários dignos e de armamento mais moderno. De outro, é preciso mudar as práticas, os processos e a mentalidade das forças policiais.


Miguel Jorge, jornalista, é vice-presidente de Assuntos Corporativos do Grupo Santander Banespa.



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