São Paulo, sexta-feira, 08 de outubro de 2010

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A destruição do Parque da Água Branca

CELSO FAVARETTO, CILAINE ALVES CUNHA e RICARDO MUSSE


A domesticação da mata concretiza ideal de assepsia que parece não levar em conta a história do local e as necessidades dos usuários

Não deixa de ser inusitado inquietar-se, neste momento, com a paroquial remodelação de um parque público. Entretanto, talvez seja oportuno trazer à baila assuntos marginalizados por uma agenda concentrada -e não só no período eleitoral- nos procedimentos de aprimoramento da produção e distribuição de riquezas.
Experiências do cotidiano permitem aferir nossa desatenção ao modelo de sociabilidade, de relação com a história e a natureza; em suma, ao processo civilizatório em implantação no país.
Na entrada do Parque da Água Branca, em São Paulo, placas anunciam "restauro e reforma de prédios". Quem o adentra depara com obras de conservação de edifícios deteriorados, mas também com uma radical alteração de sua concepção paisagística e sociocultural, que extingue suas características de espaço ímpar de lazer e fruição da natureza.
A vegetação rasteira, que atapetava árvores frondosas, cada dia menos numerosas, e arbustos como hibisco e dracena foram substituídos, em boa medida, por pedregulhos.
Essa versão "fake" de jardim europeu destruiu o habitat de galinhas d'angola, gansos, pavões e micos que perambulavam livremente e davam ao parque um charme diferencial.
Como já noticiado, o primeiro movimento de reformulação consistiu na derrubada de árvores. Os responsáveis pela reforma adiantaram três critérios "técnicos" para uma nova rodada de extração de árvores: 66 pínus, pois seu tipo de raiz torna a árvore instável; árvores pioneiras ou "senis", que teriam completado sua função ambiental e podem tombar; e qualquer outra árvore envolta por erva de passarinho, sujeita à invasão de cupins.
Delineia-se, portanto, uma remodelação que ameaça o ecossistema vigente, desfigurando os enclaves de Mata Atlântica, apesar de seu tombamento.
Os espaços passaram a ser rigidamente controlados. Em diversos ambientes ao ar livre agora é proibido comer. Namorados são instruídos a evitar abraços e beijos.
Na praça dos idosos só podem permanecer os que têm mais de 60 anos, vetando-se a amigável convivência entre as diversas faixas etárias. A ampliação generalizada de lugares destinados a exercícios físicos tende a transformar o parque em uma academia a céu aberto.
A domesticação da mata concretiza ideal de assepsia que parece não levar em conta a história do local e as necessidades dos usuários.
O desconforto de muitos frequentadores diante dessa higienização da natureza e do ambiente cultural foi reforçado pela remoção do "Revelando São Paulo", uma exposição anual, no centro do mundo urbano, de tradições caipiras e culturas rurais remanescentes de todo o Estado.
Projeta-se, ainda, instalar na Casa do Caboclo -ponto de violeiros e da disputada cavaca, com paredes de taipa e chão de terra batida- jardins e pisos intertravados.
Realiza-se, assim, uma desruralização do parque, em favor de uma racionalização que diminui as oportunidades de convívio com a natureza e reforça ainda mais a cultura do cimento e do concreto.


CELSO FAVARETTO, 68, CILAINE ALVES CUNHA, 47, e RICARDO MUSSE, 48, são, respectivamente, professores de estética, literatura brasileira e sociologia na USP.

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