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São Paulo, sábado, 08 de novembro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O atual nível de crescimento da economia norte-americana é sustentável?

NÃO

Transatlântico movido a palha

ROLAND VERAS SALDANHA JR. e PRISCILA AZZOLINI

Não passa despercebido o recente aquecimento macroeconômico nos EUA. Responsável por quase metade da renda adicional gerada no planeta nos últimos dez anos (em valores nominais), esse país não se move nas águas econômicas sem fazer tremerem todos os oceanos e embarcações menores.
Entre julho e setembro deste ano, a economia norte-americana cresceu a uma taxa anualizada de 7,2%, velocidade bastante superior aos 3,3% efetivamente contabilizados em 2002.
Publicaram-se ainda, em dissecação, os aumentos repentinos no consumo (6.6%), nos investimentos produtivos (11%), nos investimentos residenciais (20%) e até nas exportações (8%) dos EUA, conforme contabilizados neste último trimestre (taxas anualizadas). São indicadores que, tomados isoladamente, chegam a extasiar, afinal pressagiam mais comércio, atividade e emprego num mundo que, via de regra, luta contra a ameaça de recessão.
Seria apressado, entretanto, projetar a partir desses números trimestrais e atípicos uma benfazeja mudança nos rumos da economia mundial. De fato, a primeira reação aos referidos números deveria ser de desconfiança, inclusive porque ainda são próximos os estragos causados pela "débâcle" nos mercados de ações de alta tecnologia pelos diversos escândalos corporativos, pelos ataques terroristas e pelas caras e pouco proveitosas incursões militares norte-americanas no Oriente Médio.
Desta feita o ceticismo é saudável.
Como pode um transatlântico avariado singrar mares com tanta velocidade? As máquinas e o combustível norte-americanos permitem depreender que, a partir de agora, essa será sua velocidade de cruzeiro? Apesar de não serem poucos os segredos do capitão Bush Jr. e sua equipe, o destino imediato de sua embarcação parece evidente, já que os fracassos bélicos e a queda de popularidade exigem esse tipo de compensação em ano pré-eleitoral.
Revertendo os esforços de seu predecessor, o atual presidente dos EUA reduziu drasticamente os impostos, aumentou os gastos públicos e facilitou o crédito, em heróicas medidas de reativação econômica que redundaram em déficits fiscal e em conta corrente estimados em 3,5% e 5% do PIB, respectivamente, para este ano. Em 2004, período eleitoral, espera-se que esses saldos sejam ainda piores.
Relativamente à política monetária e de crédito, novamente uma frouxidão preocupante no hemisfério Norte. As taxas de juros básicas nos EUA permanecem exibindo recordes de baixa e, com o suporte do governo, os residentes daquele país têm conseguido empréstimos com garantia hipotecária sob condições bastante facilitadas, inclusive para renegociação.
Para dar uma noção mais precisa, entre o primeiro e o segundo trimestres de 2003 os empréstimos domésticos não-financeiros nos EUA mais do que duplicaram, chegando a US$ 2,5 trilhões (anualizados). Incluídos nesses dados, vale destacar, os empréstimos do governo federal, que aumentaram 11 vezes, chegando a US$ 888 bilhões.
Com estímulos dessa monta, o desempenho dos EUA deixa de surpreender. Afinal, as políticas de lassidão fiscal, monetária e creditícia são conhecidos remédios anti-recessivos desde a década de 1930, merecendo lembrança seu progenitor, lorde Keynes.
O pai da macroeconomia, entretanto, receitava alquimias similares às que motivam esse pique da economia norte-americana como solução de curto prazo, horizonte de planejamento para o qual engendrou sua teoria geral. Quando se passa a tratar de sustentabilidade do processo de aquecimento no decorrer do tempo, questão de crescimento, os problemas ganham complexidade distinta. De fato, imaginar que essa performance recente possa se manter para além de 2004 exigiria supor a razoabilidade de um endividamento interno e externo nos EUA a taxas crescentes, senão explosivas.
Entendendo o abrupto reaquecimento da maior economia mundial como efeito de soluções emergenciais e transitórias, com inafastável componente eleitoreira; não soa plausível nenhum grau de otimismo pela leitura das estatísticas apresentadas.
É de notar, não obstante, que historicamente os EUA têm mostrado habilidade em compartir os custos de suas mazelas macroeconômicas com o resto da sociedade mundial. Assim, chega a ser assustador o cenário em que a farra do crédito hipotecário e dos déficits gêmeos chegue a termo.
Certamente os americanos ficarão decepcionados em saber que seus imóveis valem muito menos do que o mercado artificialmente inflado faz sugerir. Resta saber o que os não residentes na terra do Tio Sam sofrerão quando a palha que tem alimentado as fornalhas do grande transatlântico acabar.


Roland Veras Saldanha Jr., mestre em economia de empresas pela FGV-SP, é professor do Departamento de Economia da PUC-SP e consultor em direito e economia. Priscila Azzolini é economista da Quest Investimentos.


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