São Paulo, terça-feira, 08 de novembro de 2005

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TENDÊNCIA/DEBATES

A profusão de escândalos

BORIS FAUSTO

De quando em quando, vale a pena tomar fôlego e analisar o acúmulo de escândalos que pesa sobre o governo Lula e seu principal partido de sustentação, ou seja, o PT. O chorrilho de problemas começou -quase nos esquecemos- com o pecado, que hoje parece comparativamente venial, da ex-prefeita do Rio de Janeiro, Benedita da Silva, viajando a Buenos Aires para um encontro de evangélicos financiada pelos cofres públicos.
Depois, enumerando apenas os momentos principais, surgiram o "affair" Waldomiro Diniz e o rosário de acusações levantadas pelo ex-deputado Roberto Jefferson, envolvendo práticas de caixa dois, "mensalão", corrupção em órgãos estatais etc., com fortes indícios de se tratar de peças de um esquema orquestrado de apropriação de recursos públicos e privados para os cofres do PT. A acusação mais recente, pelo menos enquanto escrevo estas linhas, é a da revista "Veja", girando em torno do financiamento da campanha presidencial de Lula pelo regime de Fidel Castro.
Além disso tudo, antes mesmo que Lula e seu partido chegassem ao poder, ficou pairando no ar um episódio qualitativamente diverso de tudo o que viria a ocorrer depois: o trágico assassinato do prefeito de Santo André, Celso Daniel, principal responsável pela campanha de Lula à Presidência da República.
Qualquer pessoa de mediana inteligência que não esteja cega por fidelidades caninas sabe que a grande maioria dessas gravíssimas acusações ou está comprovada ou é bastante verossímil, tanto mais quando consideradas, uma a uma, no "conjunto da obra".
Notemos que a verossimilhança muitas vezes vem conduzindo à verdade, como se viu no caso das acusações do ex-deputado Roberto Jefferson, em um primeiro momento apoiadas apenas em afirmações destituídas de prova.
A partir daí, as investigações começaram a desvendar um esquema envolvendo figuras até então desconhecidas não só do grande público como até de pessoas tidas como bem informadas, a mencionada larga utilização de caixa dois, respingando no ex-presidente do PSDB, o pagamento do "mensalão", em parcelas módicas ou generosas, prêmio restrito a parlamentares do PT e da base aliada. Hoje, as provas dos procedimentos ilícitos são evidentes, a não ser que se queira entender como prova apenas confissões por escrito dos acusados.


As provas dos ilícitos são evidentes, a não ser que se queira entender como prova apenas confissões por escrito dos acusados

Ao mesmo tempo, há muitos episódios não totalmente esclarecidos em que, no entanto, a verossimilhança das acusações deve ser levada em conta.
Por exemplo, embora não tenha sido fácil acompanhar os meandros da investigação no Conselho de Ética da Câmara acerca da quebra de decoro parlamentar por parte do deputado José Dirceu, há pelo menos indícios de prova do que se alega contra ele. Além disso, no terreno da verossimilhança, é de crer que uma pessoa com a pertinácia de Dirceu, dotado de um feixe de poderes formais e informais como ministro-chefe da Casa Civil, ignorasse tudo o que se passava a sua volta, como se fosse um menino ingênuo enganado pela tosca dupla Delúbio Soares-Silvio Pereira?
No caso Santo André, é preciso pisar com cautela para evitar ao máximo a partidarização, de um lado ou de outro, de uma história dramática.
Feita a ressalva, não é possível calar as muitas perguntas. Por exemplo, por que os dirigentes do PT, que levantaram a tese de uma "conspiração da direita", estendendo-a ao caso da morte do prefeito Toninho, de Campinas, passaram a endossar a tese de crime comum, a ponto de montar uma estratégia em torno dessa versão?
Indo adiante, que prova cabal contestou o laudo do perito Carlos Delmonte, constatando a existência de sinais de tortura no corpo da vítima? Ainda mais, a morte de tantas testemunhas, incluindo o garçom que serviu um jantar a Celso Daniel e a seu acompanhante Sérgio Gomes da Silva, minutos antes do seqüestro, seria apenas uma extraordinária coincidência? Em seqüência, a morte do perito Delmonte, em circunstâncias misteriosas, seria também mais uma dessas fantásticas coincidências?
O recente caso da conexão cubana precisa ainda ser elucidado. No plano dos antecedentes, Cuba não é para o atual governo um país distante ou problemático. Pelo contrário, são notórias as simpatias pelo regime de Fidel Castro, assim como as íntimas relações pessoais de parte a parte.
Mas, se essa intimidade é lamentável, levando a ignorar as violações dos direitos humanos do regime castrista, ela não constitui, em si mesma, uma peça de acusação. De outra parte, o comportamento prudente da oposição mostra mais uma vez sua responsabilidade -alguns diriam suas vacilações- e está longe de compor um quadro conspiratório que o governo e seus áulicos nos querem impingir.
Se muita coisa deve ainda ser sugerida sob a forma de perguntas, uma triste certeza se impõe: em matéria de escândalos, este governo e seu partido -cuja estrela brilha nos jardins do Alvorada- superou tudo o que tínhamos visto até aqui.

Boris Fausto, historiador, é presidente do Conselho Acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura Internacional) da USP. É autor de, entre outras obras, "A Revolução de 30" (Cia. das Letras).

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