São Paulo, domingo, 08 de dezembro de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Desconfiança saudável

MARILENA CHAUÍ


O PT nunca teve condições objetivas para atrapalhar o presidente da República, ainda que pudesse aborrecê-lo

Num primeiro momento, não houve como não se deixar levar pela celebração promovida pelos meios de comunicação quanto ao caráter historicamente sem igual da transição de governo, encetada pelo presidente da República em exercício. Depois, também não houve como deixar de fazer uma reflexão sombria: que triste um país no qual uma disposição constitucional -transmitir um cargo de governo- é celebrada como se dependesse da vontade pessoal do governante e não da lei. Chegados a esse ponto, não teve jeito: "caiu a ficha", como se costuma dizer.
De fato, todos os que conhecem FHC sabem que ele não dá ponto sem nó. É um traço marcante de sua personalidade, frequentemente elogiado como tino político. O caso é que, por isso mesmo, a celebração da transição como gesto grande do estadista "não cola". Mesmo porque não há como esquecer um fato político recente, que não possui a menor grandeza democrática: a Presidência da República propôs e implantou mudanças nas regras eleitorais quando a campanha eleitoral já estava iniciada.
Pode-se imaginar que a transição proposta por FHC tenha ares de um acontecimento democrático ímpar, que deixará nos anais da história brasileira sua figura como estadista exemplar. Mas FHC é moço o bastante para não se contentar em aguardar uma longínqua consagração pela história. Ele prepara um futuro político próximo.
Donde, duas perguntas merecem ser feitas: 1) se, como diz FHC, o PT o atormentou e azucrinou durante oito anos (e FHC pede ao PSDB que não faça isso com Lula) e 2) se FHC está dando os pontos numa costura que envolve seus planos políticos futuros, por que essa transição?
No que respeita à primeira pergunta, é óbvio que a afirmação sobre o poderio do PT é descabida, pois FHC foi eleito por uma aliança que lhe assegurou maioria no Congresso e sempre lhe permitiu negociar com os vários partidos (das mais variadas maneiras) de modo a aprovar praticamente todos os projetos, tanto os apresentados inicialmente sob a forma de medidas provisórias, como os outros de tramitação regular pelo Congresso. Minoritário, o PT nunca teve condições objetivas para atrapalhar o presidente da República, ainda que pudesse aborrecê-lo (houve momentos em que, perdendo a paciência, altaneiro referiu-se à oposição como caipira, atrasada e boboca). Portanto, sob a aparência de uma convocatória à moderação do PSDB, a declaração presidencial tem uma finalidade precisa: promover a imagem do PT como sectário. Não é outra, aliás, a finalidade de sua explicação de que não há fome no Brasil, de sorte que esta pareça uma invencionice populista do presidente eleito e de seu partido.
No que respeita à segunda pergunta, a resposta também é clara: FHC quer sair ileso do governo e assegurar um bom futuro político para si. A crise econômica é grave, e a inflação está batendo freneticamente à porta, além de tudo que ainda ignoramos que se passa nas salas secretas do poder. Que faz FHC? Inventa a transição de tal maneira que, enquanto ainda é o presidente da República e ainda está governando, antecipa a imagem de Lula como presidente e a sua como ex-presidente (tanto assim, que vai viajar mundo afora nos próximos dias), de modo que o ônus da crise criada por seu governo recaia sobre Lula e o PT. Tudo caminhando como previsto, FHC sairia triunfante e Lula entraria já desgastado.
Sem dúvida, Lula, a direção do PT e a equipe de transição sabem disso melhor do que nós e não se deixarão iludir pelas aparências. Mas não custa a gente começar a deixar público que ninguém está tomando gato por lebre, pois, como diz o ditado, seguro morreu de velho e desconfiado ainda está vivo.

Marilena Chauí, 61, professora de filosofia política e história da filosofia moderna da USP, é autora, entre outros, de "A Nervura do Real" (Companhia das Letras)


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