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JOSÉ SARNEY
Uma guerra
e duas vacas
Estamos com o pé na estrada,
2004 avança. Octávio Paz, em sua
obra "Iníquas Simetrias", achava, com
algum pessimismo, que, de um balanço dos dois últimos séculos, tinham ficado apenas os nacionalismos e as religiões.
Do ano passado, ficaram a vaca louca, que voltou a atacar, desta vez nos
Estados Unidos, e a vaca da Parmalat.
Sobre a primeira, a discussão vai mais
longe e começa pelo exame de seu
DNA, uma vez que os americanos dizem ser a mesma canadense infiltrada
para desmoralizar os rebanhos ianques. Da segunda, o Brasil sente as
consequências no calote já anunciado
aos produtores de leite brasileiros que
agora não recebem o seu dinheiro
nem sabem onde entregar a produção. É aquela história do Fellini com a
Anita Ekberg: "Bevete più latte / prodotto italiano". Mas o seu DNA já se
sabe qual é. É o mesmo da Enron e de
outras grandes multinacionais cujo
hobby atual é falsificar balanços.
Mas o que mais ficou de 2003 foi a
certeza de que as guerras modernas
não são feitas para ganhar, mas para
eternizar problemas. O Afeganistão e
o Iraque são exemplos claros de que
os problemas que elas julgavam conjurar recrudesceram e já se tornam insolúveis.
A análise do ano passado nos traz
uma reflexão sobre a burrice humana.
O atentado contra as torres gêmeas de
Nova York mostrou ao mundo o perigo do terrorismo e deu aos Estados
Unidos uma onda mundial de solidariedade e desejo de cooperação. Todos
os países estavam dispostos a participar de um trabalho coordenado, cada
um assumindo uma parcela de responsabilidade para combater o terror.
Os americanos poderiam ter chefiado
um movimento concreto pela paz e
por mecanismos internacionais de
combate ao terrorismo, que é, como
sabemos, uma forma primária e desumana de ação política. O que ocorreu?
O presidente Bush agiu unilateralmente e partiu para uma guerra heterodoxa que até hoje proclama e invoca
-e ninguém sabe como é o perigo,
onde ele está, quais são os inimigos e
com o que se pretende acabar. O terror é uma coisa difusa, e só podemos
combatê-lo com as armas da cooperação internacional e do engajamento
de todos.
Bush preferiu o caminho de desorganizar o mundo. Nestes dois anos, o
terrorismo difundiu-se, ampliou-se e
agora dissemina-se em todos os lugares e motivações. O seu foco principal,
a situação no Oriente Médio, com a
questão judaico-palestina, contaminou o todo. A paz na região, principal
e objetiva ação contra o terrorismo, ficou submetida a um segundo plano.
A vida de todos os cidadãos, em todos os lugares e em todas as situações,
tornou-se presa dessa fúria. O seu efeito mais brando sentimos agora, na dificuldade de livre circulação das pessoas, na identificação nos aeroportos
americanos, que gerou a decisão esdrúxula de dar um troco brasileiro.
Tal medida nos retira condições de lutar contra esse tipo de conduta americana. O que o Brasil deve fazer não é
disputar quem suja mais os dedos dos
cidadãos, mas combater esse tipo de
desorganização dos mecanismos internacionais. A posição do Brasil deve
ser a de que em nenhum lugar do
mundo se sujem os dedos das pessoas
e que se viaje num ambiente de paz,
sem terror e sem restrições às liberdades humanas.
Começamos o ano: com a vaca louca, a da Parmalat e a continuidade da
Guerra do Iraque. Os chineses matando os gatos que querem nos matar
com a gripe asiática. Enquanto isso,
graças a Deus, a nossa vaquinha do
presépio do Natal continua a simbolizar o lado bom da humanidade.
José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.
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