São Paulo, sexta-feira, 09 de janeiro de 2004

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JOSÉ SARNEY

Uma guerra e duas vacas

Estamos com o pé na estrada, 2004 avança. Octávio Paz, em sua obra "Iníquas Simetrias", achava, com algum pessimismo, que, de um balanço dos dois últimos séculos, tinham ficado apenas os nacionalismos e as religiões.
Do ano passado, ficaram a vaca louca, que voltou a atacar, desta vez nos Estados Unidos, e a vaca da Parmalat. Sobre a primeira, a discussão vai mais longe e começa pelo exame de seu DNA, uma vez que os americanos dizem ser a mesma canadense infiltrada para desmoralizar os rebanhos ianques. Da segunda, o Brasil sente as consequências no calote já anunciado aos produtores de leite brasileiros que agora não recebem o seu dinheiro nem sabem onde entregar a produção. É aquela história do Fellini com a Anita Ekberg: "Bevete più latte / prodotto italiano". Mas o seu DNA já se sabe qual é. É o mesmo da Enron e de outras grandes multinacionais cujo hobby atual é falsificar balanços.
Mas o que mais ficou de 2003 foi a certeza de que as guerras modernas não são feitas para ganhar, mas para eternizar problemas. O Afeganistão e o Iraque são exemplos claros de que os problemas que elas julgavam conjurar recrudesceram e já se tornam insolúveis.
A análise do ano passado nos traz uma reflexão sobre a burrice humana. O atentado contra as torres gêmeas de Nova York mostrou ao mundo o perigo do terrorismo e deu aos Estados Unidos uma onda mundial de solidariedade e desejo de cooperação. Todos os países estavam dispostos a participar de um trabalho coordenado, cada um assumindo uma parcela de responsabilidade para combater o terror. Os americanos poderiam ter chefiado um movimento concreto pela paz e por mecanismos internacionais de combate ao terrorismo, que é, como sabemos, uma forma primária e desumana de ação política. O que ocorreu? O presidente Bush agiu unilateralmente e partiu para uma guerra heterodoxa que até hoje proclama e invoca -e ninguém sabe como é o perigo, onde ele está, quais são os inimigos e com o que se pretende acabar. O terror é uma coisa difusa, e só podemos combatê-lo com as armas da cooperação internacional e do engajamento de todos.
Bush preferiu o caminho de desorganizar o mundo. Nestes dois anos, o terrorismo difundiu-se, ampliou-se e agora dissemina-se em todos os lugares e motivações. O seu foco principal, a situação no Oriente Médio, com a questão judaico-palestina, contaminou o todo. A paz na região, principal e objetiva ação contra o terrorismo, ficou submetida a um segundo plano.
A vida de todos os cidadãos, em todos os lugares e em todas as situações, tornou-se presa dessa fúria. O seu efeito mais brando sentimos agora, na dificuldade de livre circulação das pessoas, na identificação nos aeroportos americanos, que gerou a decisão esdrúxula de dar um troco brasileiro. Tal medida nos retira condições de lutar contra esse tipo de conduta americana. O que o Brasil deve fazer não é disputar quem suja mais os dedos dos cidadãos, mas combater esse tipo de desorganização dos mecanismos internacionais. A posição do Brasil deve ser a de que em nenhum lugar do mundo se sujem os dedos das pessoas e que se viaje num ambiente de paz, sem terror e sem restrições às liberdades humanas.
Começamos o ano: com a vaca louca, a da Parmalat e a continuidade da Guerra do Iraque. Os chineses matando os gatos que querem nos matar com a gripe asiática. Enquanto isso, graças a Deus, a nossa vaquinha do presépio do Natal continua a simbolizar o lado bom da humanidade.


José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.


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