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TENDÊNCIAS/DEBATES
Anistia jamais
MIGUEL REALE JÚNIOR
Agora que se fala em anistiar o ex-deputado José Dirceu, é fundamental relembrar os fatos que levaram à sua cassação
AGORA QUE se fala em anistiar
José Dirceu, é fundamental relembrar os fatos que levaram à
sua cassação.
O deputado Júlio Delgado, relator
do processo de cassação, em seu parecer, acentuava que Dirceu, por cumplicidade comissiva ou omissiva, como coordenador político do governo,
arquitetou a engenharia política que,
por quase dois anos, ideou e construiu
o que vulgarmente, nos escaninhos
do Congresso, se rotulou de "governabilidade do amor remunerado", sobre a qual se expandiu a base de sustentação do governo na Câmara.
Observava Júlio Delgado que, diante do conjunto expressivo de evidências, a cassação de Dirceu se impunha
como meio de restaurar a dignidade e
a credibilidade da Câmara, a ficar
imune a influências deletérias, como
a exercida por esse esquema de repasse de recursos a parlamentares.
Ressaltava, também, o parecer, ter
se firmado uma aliança política que
envolvia um esquema de patrocínio
de despesas de campanha e de incentivos financeiros a retirar do Poder
Legislativo a autonomia e a isenção
necessárias para o exercício de suas
atividades típicas.
Júlio Delgado concluía que, seja como autor ou articulador, a conduta do
ex-deputado José Dirceu foi capaz de
fraudar o regular andamento dos trabalhos da Câmara dos Deputados, influenciando em suas deliberações e
votações. Em apertada síntese, esse o
teor do parecer pela cassação.
Por esses fatos foi cassado, sofrendo a pena acessória de inelegibilidade
pelo prazo de dez anos. A votação pela
cassação foi expressiva, colhendo-se
293 votos a favor e 192 contra.
Recordados os fatos, cumpre examinar se os mesmos são compatíveis
com o pretendido recurso à iniciativa
popular para deslanchar o projeto de
anistia de José Dirceu.
A Constituição, no art. 14, institui
as formas de participação popular no
processo legislativo, como plebiscito,
referendo e iniciativa popular. A lei nš
9.709/98, que disciplinou o processo
de participação popular, estatui que o
plebiscito e o referendo devem versar
sobre matéria de acentuada relevância, de natureza constitucional, legislativa ou administrativa.
O projeto de lei proposto por iniciativa popular deve ser apresentado à
Câmara dos Deputados subscrito, no
mínimo, por 1% do eleitorado nacional, distribuído pelo menos em cinco
Estados, com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada
um deles.
Em correspondência com as outras
formas de participação popular e pelas exigências de 1,5 milhão de assinaturas em pelo menos cinco Estados,
verifica-se que a matéria de projeto
de iniciativa popular também não pode deixar de ser de acentuada relevância. Não é efetivamente o caso.
Se o PT tem um grande número de
deputados e forma um bloco majoritário, estando na presidência da Casa,
por que não ser o projeto de lei de
anistia de José Dirceu apresentado
pelo partido ou por um grupo de deputados? A razão é simples: pretende-se mobilizar o país no processo de
beatificação de José Dirceu, transformando a coleta de assinaturas na
mais perfeita mistificação para ungi-lo no papel de coitadinho injustiçado,
a ser elevado a pretendente ao Planalto em 2010. Estaria a começar a campanha presidencial.
O processo de beatificação brotaria
do povo, que o aclamaria um perseguido político a ter a elegibilidade devolvida por força do reclamo popular.
A pantomima estaria pronta.
Por outro lado, também a anistia
não se compadece com a cassação de
José Dirceu e com os fatos pelos quais
foi cassado. A anistia aplica-se, em geral, para os crimes políticos. Tem cabimento quando as circunstâncias
históricas revelam que a paz social
precisa ser readquirida, tanto que se
extingue a punibilidade riscando do
mundo o fato. Pela anistia se cobre a
história com o véu do esquecimento,
pois concerne ao fato, e não à pessoa.
Considera-se o fato como inexistente.
O maestro, que regia o "concerto"
do mensalão, agora quer transformar
a batuta em varinha mágica para fazer
desaparecer a história, jogando ao absoluto esquecimento os fatos graves
que vitimaram a vida política de nosso país, em especial a Câmara.
Até quando a nação se permitirá ser
enxovalhada pela mentira e pela desfaçatez de uma mistificação? E mais:
em desprezo ao Supremo Tribunal
Federal, onde tramita a ação penal, na
qual o pretendente a beato responde
no âmbito criminal pelos mesmos fatos pelos quais foi cassado.
Até quando?
MIGUEL REALE JÚNIOR, 62, advogado, é professor titular da Faculdade de Direito da USP e membro da Academia Paulista de Letras. Foi secretário da Segurança Pública
(gestão Montoro) e da Administração (gestão Covas) do
Estado de São Paulo e ministro da Justiça (governo FHC).
miguel@realeadvogados.com.br
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