São Paulo, Terça-feira, 09 de Março de 1999
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Grande figura humana

CARLOS HEITOR CONY


Rio de Janeiro - O único defeito que um cão pode ter é o dono. Obra-prima da natureza em matéria de afeto e lealdade, independentemente de raças e climas, o cão só pode ser estragado quando de propósito o estragam.
É o que vem acontecendo com determinadas experiências genéticas que buscam fazer do cão uma arma, mais de exibição do que de guarda pessoal.
Em princípio, qualquer cão, mesmo os pequeninos que são, até certo ponto, ridículos objetos de adorno, espantam bandidos e evitam assaltos. É curiosa a psicologia do criminoso: ele não teme a metralhadora do policial, a arma do dono da casa. Mas quando se depara com um cão, treme nos alicerces. Não dá para entender, mas é assim.
Daí a inutilidade de criar cães especificamente para guarda. É um desperdício da natureza. E crime maior é criá-lo, geneticamente ou experimentalmente, para o ataque.
Não sei não, mas acredito que a humanidade será mais feliz no dia em que cada lar, cada família, tiverem um cão perto.
Ele impõe uma rotina de servidão e alerta, uma solidariedade cuja única recompensa é saber que alguém nos ama, sejamos bons ou maus, dignos ou indignos.
Na outra ponta da corda, nada mais estúpido do que criar ou ensinar esses animais a serem sanguinários. Evidente que eles aprendem, como qualquer homem aprende o que não presta. É mais fácil ensinar o vício do que a virtude -esse conceito banal é antigo, veio dos gregos anteriores a Sócrates.
Com licença de um ex-ministro que classificou sua cadela de grande figura humana, o episódio da vira-lata que salvou uma criança da fúria de um cão corrompido pelo dono deve envergonhar a todos nós, que nos julgamos reis da criação. Grande vantagem ser rei de pulgas e baratas.
Um cão, em seu estado natural, é bem melhor do que qualquer ser humano. Ele sabe que o milagre biológico da vida só tem sentido quando as condições que o fazem viver têm um compromisso maior do que a vida, que é o amor.


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