São Paulo, Terça-feira, 09 de Março de 1999
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O equilíbrio no Mercosul


Está em jogo a criação do que se poderia chamar de "zona de prosperidade compartilhada" para toda a América do Sul


LUIZ FELIPE DE SEIXAS CORRÊA

O Mercosul é uma das mais bem-sucedidas obras da política externa brasileira em todos os tempos, com efeitos positivos de amplo alcance histórico nos campos político-estratégico e econômico-comercial. A integração é uma política de Estado do Brasil, apoiada pelo conjunto das forças políticas nacionais e da sociedade. Ocasionalmente, contudo, ainda se registram críticas quanto aos resultados para o Brasil ou à forma de condução das negociações.
Em 2/3, esta seção publicou artigo do professor Ives Gandra da Silva Martins, no qual se expõe com particular habilidade a visão de que os entendimentos comerciais com a Argentina e os parceiros do bloco estariam sendo conduzidos de forma desequilibrada, em detrimento do Brasil. Os dados e argumentos apresentados são importantes e merecem toda a atenção do governo.
Se há algum predomínio no Mercosul, parece-me bem claro ser o predomínio do equilíbrio. Tendo sido embaixador na Argentina, registro impressões que consolidei no exercício dessa função e que considero relevantes para uma visão abrangente do tema.
O Brasil tem acumulado, efetivamente, déficits comerciais com o Mercosul e em particular com a Argentina (cerca de US$ 6 bilhões no período 1995-98). Tomadas fora de contexto, cifras como essa poderiam conduzir a avaliações equivocadas. É importante, por isso, considerar o quadro mais amplo.
1) A partir de 1995, a balança comercial brasileira passou a apresentar déficits nas relações com todos os principais parceiros, por fatores como a expansão da demanda interna, a sobrevalorização cambial ou os efeitos da abertura comercial. Não há, portanto, de forma alguma, um problema específico de déficits comerciais (localizados) com o Mercosul ou a Argentina, provocado por negociações malconduzidas.
2) O déficit comercial com a Argentina decorre, em boa medida, da importação de produtos como petróleo e trigo, que (devido à falta de produção nacional ou à falta de recursos para manter medidas de apoio oficial que viabilizavam essa produção) seriam necessariamente comprados no exterior, da Argentina ou de outros supridores.
No passado, por razões políticas, preferíamos importar petróleo do Oriente Médio ou de outras regiões distantes, nas quais, em contrapartida, temos menor capacidade de negociar a venda de produtos brasileiros. No governo Itamar Franco, quando o atual presidente, Fernando Henrique Cardoso, era ministro das Relações Exteriores, tomou-se a decisão estratégica de importar petróleo da Argentina, o que abriu espaço para uma expansão concomitante de nossas vendas para aquele mercado. Em 1997, por exemplo, o déficit comercial com a Argentina foi de US$ 1,35 bilhão, mas as importações de combustíveis e cereais daquele país superaram a marca de US$ 2 bilhões.
3) Em face dos déficits com o conjunto do Mercosul, é fundamental ter em mente o aspecto qualitativo das trocas. Em 1997, o bloco foi o principal mercado para exportações brasileiras de manufaturados (28% do total), à frente de EUA (21%) e União Européia (16%). O Mercosul absorve exportações de maior valor agregado, o que possibilita criar e manter empregos em setores dinâmicos e de melhor remuneração.
4) Desde a assinatura do Tratado de Assunção, em 1991, as exportações do Brasil para os parceiros sub-regionais cresceram de US$ 2,3 bilhões para cerca de US$ 9 bilhões. Em nenhum outro mercado nossas vendas tiveram desempenho minimamente comparável.
5) As correntes de comércio no Mercosul têm apresentado comportamento cíclico. Com a Argentina, em contraste com os déficits de 1995 a 1998, havíamos acumulado superávit de pouco mais de US$ 2,7 bilhões entre 1992 e 1994. Não se pode descartar, em 1999, que a balança comercial bilateral volte a ser superavitária para o Brasil.
O último dado esteve no centro de recentes debates. Após a desvalorização do real, amplos setores da sociedade argentina exigiram, precipitadamente, a adoção imediata de medidas para conter a presumida ameaça de incremento exponencial nas exportações de produtos brasileiros. Os dois governos reagiram de forma sensata e firme, estabelecendo uma série de procedimentos para evitar desequilíbrios e manter o monitoramento do intercâmbio.
O Brasil deixou claro que não poderia aceitar medidas unilaterais. O governo argentino, por sua vez, manteve notável sentido de equilíbrio. O presidente Menem excluiu a adoção de medidas contra produtos brasileiros e declarou: "Em alguns momentos, nós estivemos mal e o Brasil nos ajudou. Chegou a hora de os argentinos exercerem a solidariedade". Esse é o espírito do Mercosul e de nossa relação com a Argentina.
Os fatos acima indicam que há, efetivamente, equilíbrio de vantagens no Mercosul. É fundamental ter em mente, porém, que a relação com a Argentina, em especial, não pode ser vista só como contabilidade de compra e venda. Os dois países percebem-se mutuamente como parceiros essenciais para a realização de seus respectivos projetos nacionais, como foi registrado na declaração assinada por seus presidentes no Rio, em abril de 1997: "Estamos construindo uma profunda e verdadeira aliança estratégica (...), (a qual) já é um elemento central e permanente de nossos respectivos projetos nacionais e constitui o melhor instrumento para o desenvolvimento de nossos povos".
Uma meta tão importante não se cria por acaso. Decorre de uma visão comum sobre os valores básicos das duas sociedades e sobre suas aspirações futuras; representa um processo de negociação permanente, que tem de ser considerado não só pelo que já obteve, mas pelo que pode obter no futuro.
O que está em jogo é a criação do que se poderia chamar de uma "zona de prosperidade compartilhada" para toda a América do Sul. O Mercosul, que nasceu da aproximação Brasil-Argentina, é a pedra angular dessa visão comum para o nosso continente.
Em 1999, o Mercosul passará por um período crucial. A tendência de crescimento do comércio e dos investimentos intra-regionais será afetada pelo desaquecimento econômico no Brasil e na Argentina. É fundamental exercitar, mais do que nunca, a vontade política que está na base do esforço de integração. Essa é a condição para preservar o equilíbrio que atingimos e que manteremos sempre, como preconizava Joaquim Nabuco, à base de "continuada vigilância e consumada prudência".


Luiz Felipe de Seixas Corrêa, 53, é secretário-geral do Ministério das Relações Exteriores. Foi embaixador do Brasil na Argentina (1997-98), no México (1989-92) e na Espanha (1993-97).



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