São Paulo, sexta-feira, 09 de maio de 2008

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O negócio das prisões

LAURINDO DIAS MINHOTO

Converter as cadeias do Brasil em negócio pode muito bem significar mais água para fazer girar o moinho da barbárie

NÃO PASSOU despercebido ao leitor desta Folha que a atual polêmica em torno da privatização das prisões transcende em muito os limites da ética. Nos EUA, país pioneiro na adoção do modelo, questões de natureza jurídica, econômica e política informam a discussão pública com igual intensidade. Um breve olhar sobre essa experiência pode contribuir para o aprofundamento do debate brasileiro.
Do ponto de vista jurídico, discute-se a legalidade da transferência da administração penitenciária a agentes privados. O contencioso envolve desde a questão da natureza jurídica da execução da pena de prisão, passa pelo monopólio estatal do uso legítimo da força e pela regulamentação do trabalho do preso e vai até o estatuto da responsabilidade civil do Estado e da iniciativa privada em processos envolvendo superpopulação, maus-tratos e rebeliões.
Vale mencionar conhecida afirmação de um agente correcional privado: "Em meu estabelecimento, eu sou a Suprema Corte". Como se sabe, a apuração de infrações e a aplicação de punições disciplinares aos detentos influencia diretamente o processo de concessão de benefícios estipulados em lei. É o caso de lembrar também que, em instituições totais como a prisão, o limite entre discricionariedade e arbítrio é sempre movediço.
Do lado econômico, a polêmica não é menos intensa. Num cenário de superpopulação e intervenção judicial no sistema, a redução dos custos do encarceramento constituiu uma das principais razões invocadas pelo governo para justificar a privatização.
Porém, as prisões privadas não têm prestado serviços necessariamente mais baratos nem mais eficientes, reproduzindo os problemas estruturais que atravessam o setor público.
Uma longa lista de práticas gerenciais ineptas pode ser detectada na experiência correcional privada estadunidense, englobando violência de funcionários contra detentos, corrupção, presença de drogas nos estabelecimentos e fugas reiteradas.
Nota-se ainda uma série de tensões entre o móvel da lucratividade e os objetivos da política penitenciária.
O modelo de parceria prevalecente nos EUA é o da remuneração das empresas com base no número de presos custodiados. Cadeias superlotadas propiciam taxas de retorno mais generosas a seus administradores.
A corrida em direção ao corte de custos tem levado à contratação de pessoal sem preparo, aumentando a possibilidade de conflitos.
Outro ponto é o trabalho prisional, realizado em condições de extrema precariedade e exploração. Por causa da pressão que exerce sobre a massa salarial, tem esbarrado no movimento organizado de trabalhadores livres.
Em termos políticos, a privatização de prisões coincide, não por acaso, com a emergência do fenômeno do encarceramento em massa, uma espécie de rebarba keynesiana na ponta punitiva do Estado que sobrevive ao fordismo.
Configurando-se em ritmo acelerado como a meca do Gulag global, a democracia norte-americana encabeça o ranking do encarceramento, com mais de 2 milhões de detentos e uma acachapante taxa de mais de 700 presos por 100 mil habitantes, desbancando afiados contendores da "corrida carcerária", como a Federação Russa (635), as Ilhas Cayman (600) e a África do Sul pós-apartheid (405).
Os principais efeitos do encarceramento em massa são: o agravamento do déficit público (248% de aumento em prisões na primeira década de experimento privado); a realocação do fundo público da área social para o sistema de Justiça criminal; a colonização da cultura comunitária pela cultura da prisão; o aumento relativo do crime, tendo em vista as altas taxas de reincidência; a destituição do direito de voto de parcela significativa da população; o aprofundamento das divisões sociais (dada a tremenda disparidade no encarceramento de negros e latinos em relação a brancos, já há quem veja na política penal dos EUA uma autêntica "ação afirmativa carcerária").
Ante o estado de calamidade pública em que se encontra o sistema penitenciário brasileiro, todo cuidado é pouco na análise de supostas panacéias, como privatização de presídios. Tendo em vista a complexidade das questões que envolve, bem como a nossa herança autoritária de controle social e violência privada -num país em que as prisões funcionam como campos de concentração para setores das classes baixas-, converter as cadeias do Brasil em negócio pode muito bem significar mais água para fazer girar o moinho da barbárie.


LAURINDO DIAS MINHOTO, 41, doutor em filosofia e teoria geral do direito pela USP, é professor de sociologia jurídica da FGV-SP. É autor de "Privatização de Presídios e Criminalidade".

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