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O negócio das prisões
LAURINDO DIAS MINHOTO
Converter as cadeias do Brasil em negócio pode muito bem significar mais água para fazer girar o moinho da barbárie
NÃO PASSOU despercebido ao
leitor desta Folha que a atual
polêmica em torno da privatização das prisões transcende em
muito os limites da ética. Nos EUA,
país pioneiro na adoção do modelo,
questões de natureza jurídica, econômica e política informam a discussão
pública com igual intensidade. Um
breve olhar sobre essa experiência
pode contribuir para o aprofundamento do debate brasileiro.
Do ponto de vista jurídico, discute-se a legalidade da transferência da administração penitenciária a agentes
privados. O contencioso envolve desde a questão da natureza jurídica da
execução da pena de prisão, passa pelo monopólio estatal do uso legítimo
da força e pela regulamentação do
trabalho do preso e vai até o estatuto
da responsabilidade civil do Estado e
da iniciativa privada em processos
envolvendo superpopulação, maus-tratos e rebeliões.
Vale mencionar conhecida afirmação de um agente correcional privado: "Em meu estabelecimento, eu sou
a Suprema Corte". Como se sabe, a
apuração de infrações e a aplicação de
punições disciplinares aos detentos
influencia diretamente o processo de
concessão de benefícios estipulados
em lei. É o caso de lembrar também
que, em instituições totais como a
prisão, o limite entre discricionariedade e arbítrio é sempre movediço.
Do lado econômico, a polêmica não
é menos intensa. Num cenário de superpopulação e intervenção judicial
no sistema, a redução dos custos do
encarceramento constituiu uma das
principais razões invocadas pelo governo para justificar a privatização.
Porém, as prisões privadas não têm
prestado serviços necessariamente
mais baratos nem mais eficientes, reproduzindo os problemas estruturais
que atravessam o setor público.
Uma longa lista de práticas gerenciais ineptas pode ser detectada na
experiência correcional privada estadunidense, englobando violência de
funcionários contra detentos, corrupção, presença de drogas nos estabelecimentos e fugas reiteradas.
Nota-se ainda uma série de tensões
entre o móvel da lucratividade e os
objetivos da política penitenciária.
O modelo de parceria prevalecente
nos EUA é o da remuneração das empresas com base no número de presos
custodiados. Cadeias superlotadas
propiciam taxas de retorno mais generosas a seus administradores.
A corrida em direção ao corte de
custos tem levado à contratação de
pessoal sem preparo, aumentando a
possibilidade de conflitos.
Outro ponto é o trabalho prisional,
realizado em condições de extrema
precariedade e exploração. Por causa
da pressão que exerce sobre a massa
salarial, tem esbarrado no movimento organizado de trabalhadores livres.
Em termos políticos, a privatização
de prisões coincide, não por acaso,
com a emergência do fenômeno do
encarceramento em massa, uma espécie de rebarba keynesiana na ponta
punitiva do Estado que sobrevive ao
fordismo.
Configurando-se em ritmo acelerado como a meca do Gulag global, a democracia norte-americana encabeça
o ranking do encarceramento, com
mais de 2 milhões de detentos e uma
acachapante taxa de mais de 700 presos por 100 mil habitantes, desbancando afiados contendores da "corrida carcerária", como a Federação
Russa (635), as Ilhas Cayman (600) e
a África do Sul pós-apartheid (405).
Os principais efeitos do encarceramento em massa são: o agravamento
do déficit público (248% de aumento
em prisões na primeira década de experimento privado); a realocação do
fundo público da área social para o
sistema de Justiça criminal; a colonização da cultura comunitária pela
cultura da prisão; o aumento relativo
do crime, tendo em vista as altas taxas de reincidência; a destituição do
direito de voto de parcela significativa da população; o aprofundamento
das divisões sociais (dada a tremenda
disparidade no encarceramento de
negros e latinos em relação a brancos,
já há quem veja na política penal dos
EUA uma autêntica "ação afirmativa
carcerária").
Ante o estado de calamidade pública em que se encontra o sistema penitenciário brasileiro, todo cuidado é
pouco na análise de supostas panacéias, como privatização de presídios.
Tendo em vista a complexidade das
questões que envolve, bem como a
nossa herança autoritária de controle
social e violência privada -num país
em que as prisões funcionam como
campos de concentração para setores
das classes baixas-, converter as cadeias do Brasil em negócio pode muito bem significar mais água para fazer
girar o moinho da barbárie.
LAURINDO DIAS MINHOTO, 41, doutor em filosofia e
teoria geral do direito pela USP, é professor de sociologia
jurídica da FGV-SP. É autor de "Privatização de Presídios e
Criminalidade".
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