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TENDÊNCIAS/DEBATES
SIM
O STF e os dilemas da saúde
MARCOS BOSI FERRAZ
C
OMO RESOLVER o dilema que
envolve a decisão que privilegia
os direitos individuais em detrimento do direito coletivo? E a quem
cabe tal decisão? Essas são duas perguntas de extrema importância que
deveriam fundamentar as discussões
e decisões em curso no STF.
As respostas parecem óbvias nos
dias atuais, ou seja: as restrições econômicas, as questões sociais, as limitações educacionais e de uso do conhecimento já disponível e o respeito
aos direitos individuais e coletivos fazem com que as decisões que envolvem o dia a dia do ser humano precisem ser mais orientadas e justificadas. A decisão em nome do indivíduo
afeta o coletivo, e a decisão coletiva
impõe restrições aos indivíduos.
Nesse cenário, certamente não deveria caber ao Judiciário fazer escolhas em um ambiente de recursos escassos. Aliás, a chegada de uma demanda a esse Poder simplesmente
constata a falha do processo de decisão que envolve a liderança e os gestores do sistema de saúde.
A decisão sobre o que (para quem e
em que momento e circunstâncias)
oferecer ao cidadão que precisa utilizar o sistema de saúde deveria ser
eminentemente técnica e fundamentada nas melhores evidências científicas, reconhecendo, porém, a limitação de recursos existentes.
Infelizmente (em qualquer país),
não é mais possível oferecer tudo para todos. Escolhas precisam ser feitas,
e dilemas e decisões difíceis, porém
responsáveis, precisam ser técnica e
socialmente tomadas.
Importante frisar que o sistema de
saúde é por natureza complexo, e decisões simples, rápidas e de curto prazo (que invariavelmente atendem a
partes ou interesses imediatos) são
equivocadas, erradas e aumentam a
entropia (bagunça) do sistema.
Embora seja um tema de difícil
(mas possível) abordagem do ponto
de vista prático, a única solução passa
pela definição de políticas públicas
fundamentadas em prioridades e estabelecidas de algumas formas: doenças mais importantes, mais frequentes, mais graves, com maior sofrimento, maior chance de prevenção; e que
a literatura biomédica tenha evidências de que, com a intervenção -prevenção, diagnóstico, terapia e reabilitação-, haverá um alívio do sofrimento ou "redução" da doença.
Doenças raras, sobretudo importantes e que afetam minorias, também não podem ser negligenciadas.
Em outras palavras, num ambiente
de escassez de recursos, não adianta
ter políticas ou ações incompletas:
diagnosticar e não ter tratamento para o paciente, seja por falta de conhecimento (não sabemos como tratar a
doença), seja por um processo "capenga" (sabemos como tratar, mas
não viabilizamos o tratamento). Em
ambos os casos, desperdiçamos recursos e aumentamos a angústia.
Dessa forma, temos alguns desafios: a definição de prioridades exige
um sistema maduro, com profissionais competentes do ponto de vista
técnico, honestos e que respeitem alguns valores éticos e morais estabelecidos pela própria sociedade. A carência de dados nacionais para orientar
algumas dessas decisões e a qualificação dos profissionais envolvidos no
processo são barreiras a transpor.
Por fim, há o ônus político de aceitar publicamente que não dá para fazer tudo para todos. Infelizmente,
pois não temos a "árvore do dinheiro", temos que assumir que somos um
país em desenvolvimento, num mundo globalizado e cheio de tentações de
consumo, inclusive na área da saúde.
Apesar desses entraves, a melhor
decisão em nome da sociedade deveria ser fundamentada por evidência e
orientada pelas prioridades e políticas públicas coordenadas e sinérgicas, mas que assumam de forma clara
e transparente alguns "nãos".
Esses "nãos", se bem definidos e
justificados, não deveriam legitimar
demandas judiciais. Uma nova interpretação do artigo 196 da Constituição passa pelo reconhecimento da escassez de recurso do sistema de saúde
e consequentes restrições, expressas
antecipada e indistintamente, para
todos os que dependem do sistema de
saúde, todos os cidadãos.
O que presenciamos atualmente é a
fraqueza da liderança política (sentido amplo), o que nos impõe um tremendo ônus e estimula a troca de responsabilidades e decisões entre os
Poderes constituídos e demais atores.
MARCOS BOSI FERRAZ, 51, médico e professor, é diretor
do Centro Paulista de Economia da Saúde da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), diretor de Economia Médica da AMB (Associação Médica Brasileira) e autor do livro "Dilemas e Escolhas do Sistema de Saúde".
marcos.ferraz@cpes.org.br
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
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