![]() São Paulo, quarta-feira, 09 de junho de 2010 |
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TENDÊNCIAS/DEBATES Marcha da Maconha e Estado de exceção
JÚLIO DELMANTO
Sob a acusação de apologia ao crime, a Marcha da Maconha foi proibida pelo terceiro ano consecutivo na cidade de São Paulo. Após negociação com a polícia, os manifestantes puderam marchar, mas, em nome da liberdade de expressão, sem pronunciar palavras ou mostrar cartazes relativos à legalização da maconha. O evento tem mais importância do que parece, pois nos explica muito sobre nossas Justiça e sociedade. A Marcha da Maconha se organiza em mais de 300 cidades no mundo, sendo que, no Brasil, estava programada para acontecer em pelo menos 12. Somente São Paulo e Fortaleza a proibiram, sob a frágil acusação supracitada. No Código Penal, apologia ao crime se caracteriza por defesa de fato criminoso ou de criminoso condenado. Não é esse o caso da manifestação em questão, que defende mudanças na lei para que plantio, comércio e consumo de maconha deixem de ser crime. Nos últimos 40 anos, somente os EUA gastaram cerca de US$ 1 trilhão na chamada "guerra às drogas". Os resultados dessa estratégia global são pífios no combate ao uso e abuso dessas substâncias. A proibição traz uma série de efeitos danosos, desde a intervenção estatal sobre condutas privadas até a violência do crime e do próprio Estado, passando por corrupção e encarceramento em massa. Mas o mandado de segurança impetrado no final do expediente de uma sexta-feira por promotores de São Paulo e prontamente acolhido pelo desembargador Sérgio Ribas, sem tempo para defesa, aponta que a marcha é "um atentado contra a sociedade ordeira", uma vez que incita prática criminosa por meio da "balbúrdia social". Em nome da ordem, contraria-se o artigo 5º da Constituição, que salvaguarda a livre expressão e a livre manifestação. Em nome da ordem, contraria-se a lei. Um bom conceito para refletir sobre a atual conjuntura é o de "Estado de exceção". Tradicionalmente invocada como suspensão de direitos num período crítico, a exceção hoje é a regra, caracterizada por uma lei maleável, aplicada seletivamente, e que faz cidadãos abrirem mão de parte de seus direitos em nome de uma democracia maior que nunca chega. Nas palavras de Giorgio Agamben, é a lei fora dela mesma. Num ambiente em que "perigosos" inimigos são forjados e superestimados de forma a nublar os verdadeiros problemas sociais, torna-se legítima uma política de guerra que se pauta pelo extermínio desses inimigos, hipotecando-se, nesse processo, preceitos básicos do convívio democrático, como o direito de defesa, e leis que se apliquem a todos. O historiador Carlo Ginzburg cita a existência de um grupo europeu de intelectuais no século 17 chamado "Libertinos Eruditos", que caracterizava a religião como uma mentira útil, sem a qual se desestruturariam as relações sociais. A proibição das drogas é uma mentira útil a uma certa ordem, que se crê não só imutável como inquestionável. Se queremos uma democracia de fato, não só o caráter mentiroso do proibicionismo deve ser questionado como também a que ele tem sido útil. JÚLIO DELMANTO, 24, é jornalista, mestrando em História Social pela USP. Participa dos coletivos antiproibicionistas Desentorpecendo a Razão (DAR) e Marcha da Maconha.
E-mail: juliodelmanto@hotmail.com. Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES Jorge Zaverucha: O jogo turco em Gaza Próximo Texto: Painel do Leitor Índice |
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