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JOSÉ SARNEY
Considerações
sobre a burrice
Sou daqueles que não acreditam
nessa história de o governo ter determinado o banimento total das
emendas orçamentárias das oposições, inclusive a da Fundação Irmã
Dulce, considerada pefelista. Isso seria
provocar a ira do céu e da terra, isto é,
uma grandiloqüente burrice. E quem
está no poder jamais é burro. Afinal, o
Orçamento federal é um instrumento
de ordenação do governo, a peça principal de tudo, o chamado cofre, aquele
que dom João 6º pedia que embarcassem em primeiro lugar quando fugiu
de Lisboa para o Brasil.
Por falar em burro, li, numa resenha
científica, dessas de descobertas de
coisas inúteis, que o burro foi domesticado duas vezes, com intervalo de
100 mil anos. Depois da primeira, fugiu para ficar selvagem e livre, mostrando que, no princípio, não era tão
burro.
Eu tive um colega de vestibular para
faculdade no tempo em que havia exame oral. Na prova de francês, foi dado
um texto para ser traduzido que trazia
a palavra "bourrer" (encher). Ele traduziu como "burro". O mestre Antônio Lopes perguntou-lhe: "Onde está
o burro?". Meu colega respondeu:
"Aqui", apontando para a palavra
"bourrer". Professor Lopes reagiu: "O
burro não está aí, está na cadeira que
você senta". E assim popularizou-se o
conceito de "burrice" que está disseminado na sociedade. Não é verdade
que o animal, o burro, não tenha contribuído para isso. Veja-se como eles
aceitavam puxar os bondes, puxando
gente, com a promessa de um capim
que não chegava nem no fim da tarde,
na hora do descanso.
O Brasil também muito deve aos
burros, algumas vezes mais do que aos
sabidos. Falamos com grande orgulho
dos bandeirantes que abriram as fronteiras do país, que foram os descobridores e pioneiros. Pois os bandeirantes não existiriam se não fossem os
burros. Era sobre suas costas que eles
entravam pelo sertão preando índios.
E o burro era tão burro que não sabia
que nas suas cangalhas vinham as barras de ouro que se iriam transformar
em pedras do convento de Mafra pela
vaidade de dom João 5º. Outra coisa
curiosa é que as grandes fortunas da
colônia eram feitas por donos de escravos e de tropas de burro. Sem outro
tipo de transporte para carga, eles
eram os grandes empresários. Ser dono dos burros era a marca de um
grande empreendedor, detentor de
um dos maiores negócios, uma Microsoft de hoje. Um deles, o pai de dona Veridiana, um dos grandes troncos
paulistas dos Prados, começou assim
e foi barão do Império.
O homem veio buscar nos bichos
exemplos para marcar os outros homens e, às vezes, ofendê-los -e aos
bichos também. Fulano é camaleão, é
cachorro, égua, cobra, raposa e outros
mais bem populares. Eu, por exemplo,
quando era novo, gostava de dizer que
tinha uma memória de elefante. Aureliano, quando se falava das raposas da
política -área em que a raposa é mais
atingida-, dizia que o fim delas era
"ser pele no pescoço das mulheres".
Mas o mais violento é égua. Li, num
canto de página policial, que um sujeito esfaqueou o outro porque foi chamado de égua. O padre Vieira, ao defender-se no Tribunal da Inquisição,
chamou os juízes de "eqüíssimos doutores" e tomou vacina: "Falo de eqüidade, e não de égua".
Bem, tudo isso para dizer que, tirar
verba da Fundação Irmã Dulce seria
uma burrice e pecado. Coisa de burro.
E Cristo fez todos os milagres do mundo: fez cego ver, morto ressuscitar,
aleijado andar. Mas não há passagem
de um burro tornar-se inteligente.
Ainda bem.
José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.
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