São Paulo, domingo, 09 de julho de 2006

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Os paraísos perdidos

AUGUSTO MARZAGÃO

"Accuse not Nature, she hath done her part; Do thou but thine."

A China, como o resto do mundo, voltou-se para a tecnologia e para as manhas e artimanhas do livre comércio

A EPÍGRAFE É de Milton. John Milton. O poema chama-se "Paradise lost" (Paraíso perdido) e é uma das jóias da literatura universal. Os dois versos dizem o seguinte, vertidos para o português: "Não acuses a Natureza! Ela fez a parte dela; / Agora faze a tua." Milton nasceu em 1608, em Londres, Inglaterra, e morreu em 1674.
Foi uma das grandes figuras do seu tempo, com relevante atividade política na época da Restauração. Escreveu poemas filosóficos e pastorais e prosa de primeira qualidade, particularmente pelo conteúdo, como "Areopagítica", que é uma candente defesa da liberdade de expressão.
Mas ficou, ou seja, é particularmente lembrado até hoje com a reverência que merecem os talentos do seu porte, exatamente por "Paradise lost", que escreveu em 1667, na realidade que ditou naquele ano, porque já estava cego quando isso aconteceu.
Faço essa referência a Milton por causa de uma notícia que li em um jornal, que dá conta da explosão do muro provisório da represa da usina de Três Gargantas, no rio Yangtze, na China.
É uma fantástica, admirável, esplendente obra de engenharia essa quase pronta represa de Três Gargantas. Seus autores, se vivêssemos em outro tempo, estariam a esta hora coroados de louros como os heróis gregos. A China tem dado algumas lições ao mundo. Não é de hoje que as dá. Apenas as lições atuais não são do mesmo teor das de antigamente. A China, como o resto do mundo, voltou-se para a tecnologia e para as manhas e artimanhas do livre comércio. Vai dar muito o que falar nos dois setores, não tenham a menor dúvida.
A proverbial paciência chinesa se presta tanto às sutilezas que a tecnologia exige como à agilidade mental, com uma substancial dose de sagacidade, que o livre comércio exercita.
Que se cuidem os ocidentais que ciscam no mesmo terreno. Aprontem-se para competir com a "qualidade" chinesa, que é a que o consumidor de hoje procura e almeja, ou seja, com o preço arrasadoramente baixo do que produz e põe no mercado mundial, como sapatos de boa aparência, vendidos a R$ 19,00 em algumas sapatarias do Rio e de São Paulo, a sofisticados produtos eletrônicos, especialidade de japoneses e coreanos em passado recentíssimo.
Os que ainda não sabiam fiquem sabendo que a China já é a quarta economia do mundo, superada apenas pelos Estados Unidos, Japão e Alemanha. E vai ser a primeira, escrevam. O chinês, além de paciente, é persistente, qualidades que se aglutinam -e que são imbatíveis quando se aglutinam.
Mas não foi o progresso comercial e tecnológico chinês que me trouxe à memória o "Paraíso perdido". Quero mais que a China progrida em paz, que compita no mercado mundial com produtos de boa qualidade e bom preço. A própria explosão do tal muro, que levantou uma onda de quase 30 metros no plácido rio Yangtze, e poderia, pela quantidade de explosivos utilizada destruir 400 prédios de dez andares, não me surpreendeu nem amedrontou. A vida já me calejou para sustos dessa grandeza.
O que me trouxe à lembrança os versos de Milton foi uma pequena observação perdida no corpo da notícia: o projeto da represa de Três Gargantas, diz o jornal, é considerado um triunfo da engenharia, "mas poderá trazer muitos problemas ambientais". Só uma pergunta, diante disso. Duas, na verdade; "perguntar não ofende", já dizia o humorista: Quando, afinal, vamos fazer a nossa parte?
Quantos paraísos teremos perdido, então?


AUGUSTO MARZAGÃO, jornalista, é autor do livro "Memorial do Presente" (Nova Fronteira). Foi secretário da Comunicação Institucional da Presidência da República (governo Itamar Franco) e secretário particular dos presidentes Jânio Quadros e José Sarney.

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