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Os paraísos perdidos
AUGUSTO MARZAGÃO
"Accuse not Nature, she hath done her
part; Do thou but thine."
A China, como o resto do mundo, voltou-se para
a tecnologia e para as manhas e artimanhas
do livre comércio
A EPÍGRAFE É de Milton. John
Milton. O poema chama-se
"Paradise lost" (Paraíso perdido) e é uma das jóias da literatura universal. Os dois versos dizem o seguinte, vertidos para o português: "Não
acuses a Natureza! Ela fez a parte dela; / Agora faze a tua."
Milton nasceu em 1608, em Londres, Inglaterra, e morreu em 1674.
Foi uma das grandes figuras do seu
tempo, com relevante atividade política na época da Restauração. Escreveu poemas filosóficos e pastorais e
prosa de primeira qualidade, particularmente pelo conteúdo, como "Areopagítica", que é uma candente defesa
da liberdade de expressão.
Mas ficou, ou seja, é particularmente lembrado até hoje com a reverência
que merecem os talentos do seu porte, exatamente por "Paradise lost",
que escreveu em 1667, na realidade
que ditou naquele ano, porque já estava cego quando isso aconteceu.
Faço essa referência a Milton por
causa de uma notícia que li em um
jornal, que dá conta da explosão do
muro provisório da represa da usina
de Três Gargantas, no rio Yangtze, na
China.
É uma fantástica, admirável, esplendente obra de engenharia essa
quase pronta represa de Três Gargantas.
Seus autores, se vivêssemos em outro tempo, estariam a esta hora coroados de louros como os heróis gregos.
A China tem dado algumas lições ao
mundo. Não é de hoje que as dá. Apenas as lições atuais não são do mesmo
teor das de antigamente. A China, como o resto do mundo, voltou-se para a
tecnologia e para as manhas e artimanhas do livre comércio.
Vai dar muito o que falar nos dois
setores, não tenham a menor dúvida.
A proverbial paciência chinesa se
presta tanto às sutilezas que a tecnologia exige como à agilidade mental,
com uma substancial dose de sagacidade, que o livre comércio exercita.
Que se cuidem os ocidentais que
ciscam no mesmo terreno. Aprontem-se para competir com a "qualidade" chinesa, que é a que o consumidor
de hoje procura e almeja, ou seja, com
o preço arrasadoramente baixo do
que produz e põe no mercado mundial, como sapatos de boa aparência,
vendidos a R$ 19,00 em algumas sapatarias do Rio e de São Paulo, a sofisticados produtos eletrônicos, especialidade de japoneses e coreanos em
passado recentíssimo.
Os que ainda não sabiam fiquem sabendo que a China já é a quarta economia do mundo, superada apenas
pelos Estados Unidos, Japão e Alemanha. E vai ser a primeira, escrevam.
O chinês, além de paciente, é persistente, qualidades que se aglutinam
-e que são imbatíveis quando se aglutinam.
Mas não foi o progresso comercial e
tecnológico chinês que me trouxe à
memória o "Paraíso perdido". Quero
mais que a China progrida em paz,
que compita no mercado mundial
com produtos de boa qualidade e bom
preço. A própria explosão do tal muro,
que levantou uma onda de quase 30
metros no plácido rio Yangtze, e poderia, pela quantidade de explosivos
utilizada destruir 400 prédios de dez
andares, não me surpreendeu nem
amedrontou. A vida já me calejou para sustos dessa grandeza.
O que me trouxe à lembrança os
versos de Milton foi uma pequena observação perdida no corpo da notícia:
o projeto da represa de Três Gargantas, diz o jornal, é considerado um
triunfo da engenharia, "mas poderá
trazer muitos problemas ambientais".
Só uma pergunta, diante disso.
Duas, na verdade; "perguntar não
ofende", já dizia o humorista: Quando, afinal, vamos fazer a nossa parte?
Quantos paraísos teremos perdido,
então?
AUGUSTO MARZAGÃO, jornalista, é autor do livro "Memorial do Presente" (Nova Fronteira). Foi secretário da
Comunicação Institucional da Presidência da República
(governo Itamar Franco) e secretário particular dos presidentes Jânio Quadros e José Sarney.
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