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TENDÊNCIAS/DEBATES
O Brasil precisa de uma reforma agrária?
SIM
Uma reforma estratégica
FREI BETTO
O Brasil foi o último país das três
Américas a abolir a escravidão. Infelizmente, ainda não abolimos a discriminação, pois, dissociada da reforma
agrária, ela não assegurou aos escravos
libertos o acesso à terra, condenando-os
a uma dupla discriminação -por serem negros e por serem pobres. Aliás, as
melhores terras do nosso país foram entregues aos desempregados europeus.
Mais de cem anos depois da abolição,
também não realizamos a nossa reforma agrária, o que é mais um entre tantos paradoxos neste território de dimensões continentais, que tem cerca de
um terço de sua população vivendo
abaixo da linha da pobreza, da qual
mais de 4 milhões de famílias expulsas
da terra, nos últimos anos, devido à expansão do latifúndio, à alta dos juros
bancários e à construção de barragens.
Este país possui 600 milhões de hectares cultiváveis, dos quais 250 milhões
são áreas devolutas e 285 milhões, latifúndios -em sua maior parte improdutivos. Basta dizer que 138 milhões de
hectares estão em mãos de apenas 28
mil proprietários; 85 milhões de hectares estão em mãos de apenas 4.236 proprietários.
Desde os anos 70, quando houve um
intenso movimento migratório do sul
para o centro-norte do país, o nosso território encontra-se loteado. Não há
mais "terra de ninguém". Pelo contrário; como ocorre no Pontal do Paranapanema, há inúmeros espaços ilegalmente ocupados por grileiros. Hoje,
cerca de 113 mil famílias sobrevivem em
acampamentos, suportando condições
desumanas, à espera de serem assentadas.
O governo Sarney, que se propôs a dar
acesso à terra a 1,4 milhão de famílias,
beneficiou apenas 90 mil, menos de 6%
do previsto. Collor acenou com a mesma proposta a 500 mil famílias, mas só
concedeu título de propriedade a 23 mil.
Itamar Franco, que pretendia beneficiar
20 mil famílias em 1993 e 60 mil em
1996, atendeu a apenas 12.600 famílias.
O governo FHC promoveu um simulacro de reforma agrária, assentando famílias em localidades sem nenhuma infra-estrutura e despertando, via postal,
uma ilusão de acesso à terra que frustrou a esperança de milhões que nunca
obtiveram a resposta esperada.
A reforma agrária é uma exigência de
modernização do capitalismo brasileiro, a começar por sua capacidade de absorção da mão-de-obra desempregada.
Ainda é o campo que mais absorve trabalhadores, mas nem sempre permite
que se tornem também produtores.
O governo Lula considera a reforma
agrária estratégica para superar a crise
social, através da ampliação da política
de crédito fundiário, da formação de
cooperativas e da intensificação da economia solidária. O Programa Fome Zero, que visa assegurar alimentos em
quantidade e qualidade suficientes a
cerca de 44 milhões de pessoas, só terá
êxito se respaldado pela reforma agrária. Ela é um compromisso de campanha e de governo do presidente Lula. A
obtenção de terras para a sua efetivação
deverá passar, necessariamente, pela
desapropriação social, nos termos estabelecidos pela Constituição Federal.
É importante que a reforma agrária
assegure a geração de emprego e renda
no campo. E um dos pólos para iniciá-la
são os atuais assentamentos, que estão a
exigir todo tipo de suporte técnico e
científico. É inútil debater se vem primeiro o ovo ou a galinha, ou seja, se o
que deve prevalecer é a cooperativa ou o
agronegócio, a pequena ou a grande
propriedade produtiva. Trata-se de
combinar diferentes alternativas de
produção, adequadas às condições regionais e voltadas tanto ao mercado interno quanto à exportação.
O importante é superar a miséria e assegurar a inclusão social desses milhares de famílias que querem também um
lugar ao sol, motivados por um dos pilares do capitalismo: o direito à propriedade. Sem a reforma agrária, nem sequer se pode garantir a elas o direito à vida, como fenômeno biológico, e à cidadania, como conquista política.
Deus criou a Terra para que todos os seus filhos tirem dela os frutos da existência.
Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei Betto, 58, frade dominicano, escritor, é assessor especial da Presidência da República e coordenador do setor de Mobilização Social do Programa Fome Zero.
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