São Paulo, quarta-feira, 09 de novembro de 2005

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Um novo PT

PAUL SINGER

"Hoje, o PT perdeu muito do seu charme original e de seu carisma inicial. (...) O PT, paladino da luta contra a corrupção, infelizmente não conseguiu evitar inteiramente que essa praga manchasse suas próprias fronteiras. O partido deixou que paulatinamente começasse a grassar no interior de alguns de seus organismos uma certa permissividade, um certo afrouxamento moral. Não foi capaz de impedir, no nascedouro, com rigor e presteza, práticas incorretas do ponto de vista da legalidade ou da legitimidade."


O partido precisa de mais verba do que arrecada de seus filiados. O tesoureiro se torna mais importante do que o presidente


Essas linhas fazem parte de um artigo que Perseu Abramo, fundador e dirigente do PT, redigiu há dez anos sob o mesmo título: "Um novo PT". Mais para o fim do texto, ele afirma: "Ou [o PT] toma a iniciativa da autodissolução deliberada, antes que as circunstâncias da vida o fragmentem, dissolvam, esfacelem e liquefaçam sob mil formas vis. (...) Ou (a alternativa mais difícil) promove uma auto-reformulação profunda e radical, na forma e no conteúdo...".
Esses excertos mostram que, para um observador clarividente como Perseu Abramo, a transformação do PT, de partido pela transformação social em máquina eleitoral, já era perceptível há pelo menos dez anos.
Essa transformação se deu pelo avanço incessante da profissionalização do partido, que acabou por subordiná-lo ao imperativo do dinheiro como fonte suprema do poder político. Ela decorre do poder do voto na decisão das controvérsias políticas e da crescente despolitização de grande parte do eleitorado, que se deixa seduzir por campanhas que adaptam as artes do marketing comercial à conquista do voto.
O PT não foi o primeiro partido a virar mera máquina eleitoral. Na verdade, no Brasil, foi o último. Quase todos os outros partidos ou passaram antes por essa metamorfose ou já nasceram como meios de obtenção de mandatos para seus dirigentes. Observando os grandes partidos de esquerda na Europa, América do Norte e América Latina, as sinas do eleitoralismo, profissionalismo e corrupção parecem inevitáveis.
Para o PT, tudo isso constitui um grande desafio, pois, para a maioria dos petistas, o estado atual do partido é inaceitável: nos municípios médios e grandes, nos Estados mais importantes e no plano nacional, as instâncias são quase inteiramente ocupadas por profissionais da política; nelas, quase não há lugar para os militantes que vivem de outros tipos de trabalho, assim como também não há nas campanhas eleitorais, dominadas por marqueteiros e todo tipo de ativistas pagos. Os filiados só participam da vida partidária uma vez a cada quatro anos, quando se realizam eleições diretas para os cargos de direção.
Considerando que a representação política, entre nós, foi desenhada para ser exercida como profissão, a presença de certo número de profissionais é inevitável, mas ela tem de ser contrabalançada por um número no mínimo igual de amadores nas instâncias de decisão do partido. Se não for assim, sindicatos, movimentos sociais, ONGs ambientalistas, de direitos humanos etc. jamais poderão influir nos debates e conclaves em que o PT decide seus rumos políticos. Daí o afastamento do PT de sua base social, reduzida ao papel de manancial de votos para seus candidatos.
Os dirigentes profissionais não são necessariamente petistas menos autênticos, mas a vitória eleitoral é vital para suas carreiras, o que os diferencia dos petistas comuns, para os quais avanços sociais e a obtenção de novos direitos tendem a ser prioritários.
É necessário, pois, romper o círculo vicioso formado pela profissionalização da direção partidária, pelo predomínio do eleitoralismo e pela perene expansão do aparelho administrativo do partido, cujo custo sobrepuja as receitas partidárias -mesmo quando a conquista de postos em governos multiplica o número dos que contribuem para o fundo partidário.
Cria-se uma situação em que o partido precisa de muito mais dinheiro do que pode arrecadar de seus filiados, o que configura uma crise financeira crônica. O tesoureiro passa a ser mais importante do que o presidente, na medida em que consegue arranjar o dinheiro faltante e ninguém se interessa em saber de onde veio. O que enseja a permissividade e a frouxidão moral de que falava Perseu Abramo.
O desafio para a indispensável "auto-reformulação profunda e radical" é reunir a vontade política dos petistas e dar os primeiros passos do que promete ser uma longa jornada. Estes consistem em cortar os laços de dependência do partido em relação ao dinheiro, o que pode ser facilitado pela crise financeira em que o PT está mergulhado.
Cessando os fluxos de dinheiro não registrado nem explicado, as contas não fecham e o aparelho partidário começa a cambalear. O que impõe urgente corte de gastos e a substituição de parte do trabalho profissional pelo voluntário, exercido por militantes que conscientemente visam a refundação do partido.
O passo seguinte é tornar a administração financeira do partido austera e transparente.
O número e os salários dos profissionais, que serão mantidos pelo partido, terão de ser diminuídos, talvez sujeitos a um teto, igual ao ganho médio dos inscritos. E a destinação dos fundos arrecadados deverá ser decidida pelos filiados diretamente, por meio dos mecanismos do orçamento participativo.

Paul Singer, 73, economista, professor titular da Faculdade de Economia e Administração da USP (Universidade de São Paulo) e pesquisador do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), é secretário nacional de Economia Solidária do Ministério do Trabalho e Emprego. Foi secretário municipal do Planejamento de São Paulo (gestão Luiza Erundina).
@ - paul.singer@mte.gov.br



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