São Paulo, Quinta-feira, 09 de Dezembro de 1999


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Sociologia das loiras

OTAVIO FRIAS FILHO

Desde Gilberto Freyre, cujo centenário se comemora no ano que vem, vemos na miscigenação um traço positivo da formação brasileira. Longe de debilitar a "raça", como se pensava antes, esse aspecto evitou que o racismo se tornasse virulento e enriqueceu a cultura popular, beneficiária da confluência de três tradições.
A noção se fixou nos anos 60, quando a "mulata-exportação" e a "morena da praia" se tornaram ícones femininos, e teve até uma consequência programática no "socialismo moreno" apregoado por Brizola e Darcy Ribeiro. De uns tempos para cá, porém, quem percorre as revistas ou a televisão percebe que alguma coisa mudou.
A presença maciça de loiras no imaginário da mídia e do show biz não é fenômeno tão frívolo, nem tão gratuito. Impulsionado, talvez, pelos progressos da cosmética que facilitam a mudança cromática, ele provavelmente reflete, num plano mais banal, o prestígio do modelo americano, imitado no mundo inteiro.
Mas a valorização da "loiritude" ressalta também um antigo mecanismo interno, que se pode chamar de racismo em cascata. Como no Brasil não existem, ao contrário de tantos outros países, blocos etnicamente homogêneos e separados, a diferença racial tende a se diluir nas inúmeras gradações que vão de um extremo ao outro.
O racismo não se torna ideológico, não se volta em abstrato contra a totalidade dos "outros", mas funciona seletivamente contra os "outros" que estejam abaixo na escala das diferenças sociais. Embora não definam a desigualdade, as diferenças raciais servem como uma régua para calcular distâncias, reais ou presumidas.
Esse paralelismo entre as escalas social e cromática se projeta na própria camada dominante, prostrada diante das imagens que vêm do exterior, emitidas por sua congênere loira. Basta folhear as revistas de ostentação da riqueza e do ócio para verificar o avanço da "loirização" como etapa superior do "embranquecimento".
Parece que foi Pelé o primeiro astro negro a se casar com uma loira. Não cabe especular sobre sentimentos pessoais, que devem ser autênticos em muitos casos, mas a tendência se tornou quase um ritual obrigatório na formação de mitos do esporte e da música, reflexo do desejo de criar um curto-circuito na cascata do racismo.
Como é comum nas reações inconscientes, a contrapartida tem sido o humorismo em torno do mito da "loira burra". Decodificada, a idéia é a de que essas pessoas, por se apegarem demais às aparências, são vazias, tão vazias como a pantomima em que "chiques e famosos" imitam seus equivalentes americanos.
Carla Perez, Xuxa, Ana Maria Braga etc. estão mostrando que até do ponto de vista do imaginário cosmético as identidades nacionais foram substituídas por um padrão artificial de inspiração americana. É uma ironia que, nas vésperas do centenário do teórico da mestiçagem, a falsa loira seja o novo ícone sexual brasileiro.


Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.


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