São Paulo, sábado, 10 de fevereiro de 2001

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Limitar a reedição de medidas provisórias vai resolver o conflito entre os poderes?

NÃO
As eternas medidas provisórias

CELSO BASTOS

No correr de sua história, o Brasil teve dois instrumentos legais destinados a conferir ao Poder Executivo uma competência excepcional: o decreto-lei e a medida provisória -para não falarmos da época em que o mero decreto tinha força de lei. A semelhança entre esses dois institutos é inequívoca.
Ambos, guardadas as características próprias de cada um, se irmanam no propósito de conferir ao Poder Executivo uma parcela maior de competência, qual seja, a de expedir atos normativos com força de lei.
O primeiro era um ato editado pelo chefe do Poder Executivo em matéria própria de lei e para vigorar como tal; tinha vigência imediata e só a perderia se fosse rejeitado pelo Poder Legislativo no prazo de 60 dias. No entanto o decurso desse lapso temporal equivalia a uma aprovação tácita. Ele estava sujeito, de outra parte, a uma série de restrições. Destacamos, entre essas restrições, a de só poder versar sobre matérias que a Lei Maior expressamente enunciava.
A Constituição de 1988 expurgou o famigerado decreto-lei, mas, por sua vez, não deixou de reconhecer a absoluta transcendência do assunto, sobretudo no que diz respeito à outorga de alguma sorte de poder de legislar ao Executivo. Foi, então, instituída a figura da medida provisória.
Todavia, não obstante vir aparentemente revestida de uma grande força, ela foi criada para não funcionar na prática. Isso porque, apesar de produzir efeitos imediatamente após a sua edição, o Texto Constitucional prevê expressamente que ela, se decorrido o prazo de 30 dias e se não for convertida em lei, perde a sua eficácia. A verificação do decurso do prazo, ao contrário do que acontecia com o decreto-lei, não implica uma aprovação tácita.
Ficava claro, portanto, que se tratava de um instituto aparentemente inócuo. Qualquer pessoa razoavelmente entendida na mecânica dos três poderes sabe muito bem que o Poder Legislativo não tem condições de se manifestar a respeito no prazo de 30 dias, isso em razão de ser ele muito lento no desempenho da atividade de legislar.
A medida provisória, da maneira pela qual foi delineada pela Lei Maior, não aterrorizava ninguém, pois essa novel medida perderia sempre a sua eficácia por decurso de prazo.
Frente a essa situação, o Poder Executivo, na tentativa de conferir uma maior eficácia à medida provisória, passou a reeditá-la. E a cúpula do Poder Judiciário, imbuída também da necessidade de interpretar a Constituição de molde a não deixar a medida provisória entravada, passou a admitir a sua reedição.
O uso da medida provisória, desse modo, tornou-se praticamente franqueado a toda a sorte de interesses, ganhando proporções não imaginadas pelo constituinte de 1988.
Pretende-se, agora, corrigir esse erro por meio da edição de uma emenda à Constituição que modifique esse estado de coisas. Todavia o projeto de emenda constitucional nš 472/97 não resolve o problema fundamental da medida provisória, qual seja, a questão de sua apreciação pelo Poder Legislativo. A solução ideal parece consistir num reexame das competências do próprio Congresso Nacional. É dizer, faz-se necessário, que ele sofra algum tipo de restrição, assim como ocorre em outros países.
Na Itália, por exemplo, em caso de não apreciação da medida, torna-se possível ao Poder Executivo fazer valer a sua competência de dissolver o Parlamento e, ao final, regular a matéria segundo a vontade de um Legislativo renovado democraticamente.
Não basta, portanto, mudar o prazo de vigência da medida provisória de 30 para 60 dias ou limitar a sua reedição a uma única vez, como parece ser o caso da referida proposta de emenda. Essa, por sua vez, só será eficiente se prever alguma sorte de ameaça de dissolução do Congresso Nacional, caso esse se torne um estorvo para a apreciação do mérito da medida provisória.
Tem-se procurado, nos últimos anos, assegurar a independência dos poderes. Acontece, entretanto, que as coordenadas fundamentais do órgão estatal não devem residir apenas na independência de cada um, mas também na implantação de uma harmonia entre eles.


Celso Ribeiro Bastos, 62, professor do curso de pós-graduação em direito da PUC-SP e diretor-geral do IBDC (Instituto Brasileiro de Direito Constitucional). E-mail: ibdc@ibdc.com.br




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