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TENDÊNCIAS/DEBATES
A hegemonia dos EUA está acabando?
SIM
Rumo ao fim
GUSTAVO IOSCHPE
Se nossa visão do passado não é de
todo acurada, o que então dizer de
nossa percepção do presente? Até a Segunda Guerra Mundial, a Grã-Bretanha
parecia reinar soberana no planeta, com
suas colônias nos quatro cantos do
mundo, enquanto os EUA pareciam ser
uma potência regional e isolacionista.
Ledo engano. Hoje se sabe que desde a
década de 1870 a ex-colônia havia ultrapassado a metrópole. Há indícios de
que agora cometemos o mesmo erro.
Os comentaristas arvoram-se em declarar a vitória dos EUA no Iraque como
prova de sua supremacia militar e o
processo diplomático que a antecedeu
como evidência da inimputabilidade
americana ante o direito internacional.
Somadas à suposta pujança econômica
e ao colonialismo cultural, analistas nos
fazem crer que estamos presenciando o
surgimento de um império hegemônico
jamais dantes visto. Vejamos.
A tão propalada superioridade econômica dos EUA vem, na verdade, se esfacelando. Alguns observadores indicam
que o PIB americano era responsável
por quase metade das riquezas do mundo no cenário pós-guerra. Estatísticas
confiáveis indicam que em 1970 essa
parcela havia declinado para 32%. Hoje,
não passa de 21%. E, a se manter o ritmo
de crescimento econômico de países como China e Índia, a fatia americana tende a encolher ainda mais. Um brilhante
professor nos dizia que a guerra contra
o capitalismo seria muito mais ingrata e
difícil para os EUA do que aquela contra
o pseudocomunismo...
Militarmente, é verdade, americanos
reinam supremos. Seu orçamento de
defesa hoje praticamente se equipara ao
do resto do mundo. Além de ser uma
marca típica dos impérios em declínio o
deslocamento de recursos da atividade
produtiva para o esforço bélico, essa superioridade talvez seja hoje mais irrelevante do que nunca. Pois a ameaça à segurança americana vem de terroristas
apátridas, e o Pentágono não consegue
nem evitar que eles se espatifem contra
seu prédio.
A idéia de que vitórias contra Estados
que "patrocinam" o terrorismo são o
caminho para liquidar esse risco baseia-se em uma invenção: a de que o terrorismo é gerado pela mistura de pobreza,
ignorância e opressão. Antes fosse. Estudos sérios sobre terroristas mostram
que são gente de nível de instrução e
renda superiores a seus compatriotas
pacíficos. A gênese do terrorismo parece estar no sentimento de humilhação,
e, contra esse, nada pior do que uma
derrota seguida da ocupação de um país
árabe pelo Exército americano.
Se os canhões americanos não calam
os homens-bomba, também não servem para subjugar grandes potências.
Londres e Paris (e, ao que parece, até a
Coréia do Norte) já não são mais conquistáveis pelo simples fato de terem armas nucleares. Júlio César subjugou a
Gália, Hitler chegou a Stalingrado, a rainha Vitória tinha a Índia e Napoleão dominou a Europa. E Bush? "Conquistou"
um país caindo pelas tabelas depois de
uma década de embargo. Bagdá não o
credencia para o Panthéon.
No campo diplomático, o esforço de
americanos em obter a sanção do Conselho de Segurança da ONU para o ataque ao Iraque é prova não da irrelevância do sistema multilateral, mas de seu
avanço. O mais notório não é que os
EUA tenham abandonando essa iniciativa, mas que assim tenham procedido
por não obterem o apoio de países inexpressivos como Angola e Guiné.
Pode ficar a impressão de que estamos
em uma nova era, em que os impérios
não mais são formados pela força de
baionetas, mas sim pela pujança tecnológica e econômica e pela disseminação
de valores culturais oriundos da metrópole. Mas também aí os EUA vão mal.
Além de sua supremacia econômica
estar em declínio no planeta, mesmo
dentro de casa as coisas não vão bem.
Pode ser que o setor corporativo volte a
investir e tenhamos um novo "boom".
Mas é igualmente possível, e mais provável, que o mercado imobiliário americano, mantido até agora à custa de juros
perigosamente perto de zero, siga o
mercado acionário e veja sua bolha especulativa estourar. Com ela, iria junto
uma boa parte do valor do mercado financeiro, que usa imóveis sobrevalorizados como garantia de empréstimos.
O monumental déficit fiscal criado pelos falcões não ajuda a situação, e qualquer crise golpearia ainda mais o dólar,
já pressionado por enormes déficits comerciais de uma sociedade que consome mais do que produz.
A própria dianteira tecnológica dos
EUA também pode estar chegando ao
fim. Ela foi construída, em grande parte,
pela vantagem quantitativa do sistema
educacional americano -os EUA historicamente compensaram a falta de
qualidade com a quantidade. Na coorte
de 66 a 72 anos de idade, por exemplo,
73% dos americanos têm diploma secundário, contra 29% dos franceses. No
grupo de 36 a 45 anos, porém, a diferença cai para 87% e 67%, respectivamente.
A única área em que os americanos
parecem reinar supremos é na exportação de sua cultura, comprovando a percepção de um de seus comediantes de
que ninguém jamais perdeu dinheiro
subestimando a inteligência alheia. A
admiração pelo "american way of life"
fundamenta-se na falácia de que os
EUA são os promotores universais da liberdade, democracia e direitos humanos. Quem nisso acredita desconhece o
tratamento dispensado aos negros americanos até a década de 60, Hiroshima,
Vietnã etc. Mas a colonização cultural
vem sempre a reboque da dominância
econômica, e cairá sozinha. Resta saber
que países ou forças ocuparão o vácuo
deixado pelo encolhimento do gigante.
Será um século interessante.
Gustavo Ioschpe, 26, é mestre em desenvolvimento econômico pela Universidade ale (EUA)
e colaborador do Folha Equilíbrio.
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