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São Paulo, sábado, 10 de maio de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A hegemonia dos EUA está acabando?

SIM

Rumo ao fim

GUSTAVO IOSCHPE

Se nossa visão do passado não é de todo acurada, o que então dizer de nossa percepção do presente? Até a Segunda Guerra Mundial, a Grã-Bretanha parecia reinar soberana no planeta, com suas colônias nos quatro cantos do mundo, enquanto os EUA pareciam ser uma potência regional e isolacionista. Ledo engano. Hoje se sabe que desde a década de 1870 a ex-colônia havia ultrapassado a metrópole. Há indícios de que agora cometemos o mesmo erro.
Os comentaristas arvoram-se em declarar a vitória dos EUA no Iraque como prova de sua supremacia militar e o processo diplomático que a antecedeu como evidência da inimputabilidade americana ante o direito internacional. Somadas à suposta pujança econômica e ao colonialismo cultural, analistas nos fazem crer que estamos presenciando o surgimento de um império hegemônico jamais dantes visto. Vejamos.
A tão propalada superioridade econômica dos EUA vem, na verdade, se esfacelando. Alguns observadores indicam que o PIB americano era responsável por quase metade das riquezas do mundo no cenário pós-guerra. Estatísticas confiáveis indicam que em 1970 essa parcela havia declinado para 32%. Hoje, não passa de 21%. E, a se manter o ritmo de crescimento econômico de países como China e Índia, a fatia americana tende a encolher ainda mais. Um brilhante professor nos dizia que a guerra contra o capitalismo seria muito mais ingrata e difícil para os EUA do que aquela contra o pseudocomunismo...
Militarmente, é verdade, americanos reinam supremos. Seu orçamento de defesa hoje praticamente se equipara ao do resto do mundo. Além de ser uma marca típica dos impérios em declínio o deslocamento de recursos da atividade produtiva para o esforço bélico, essa superioridade talvez seja hoje mais irrelevante do que nunca. Pois a ameaça à segurança americana vem de terroristas apátridas, e o Pentágono não consegue nem evitar que eles se espatifem contra seu prédio.
A idéia de que vitórias contra Estados que "patrocinam" o terrorismo são o caminho para liquidar esse risco baseia-se em uma invenção: a de que o terrorismo é gerado pela mistura de pobreza, ignorância e opressão. Antes fosse. Estudos sérios sobre terroristas mostram que são gente de nível de instrução e renda superiores a seus compatriotas pacíficos. A gênese do terrorismo parece estar no sentimento de humilhação, e, contra esse, nada pior do que uma derrota seguida da ocupação de um país árabe pelo Exército americano.
Se os canhões americanos não calam os homens-bomba, também não servem para subjugar grandes potências. Londres e Paris (e, ao que parece, até a Coréia do Norte) já não são mais conquistáveis pelo simples fato de terem armas nucleares. Júlio César subjugou a Gália, Hitler chegou a Stalingrado, a rainha Vitória tinha a Índia e Napoleão dominou a Europa. E Bush? "Conquistou" um país caindo pelas tabelas depois de uma década de embargo. Bagdá não o credencia para o Panthéon.
No campo diplomático, o esforço de americanos em obter a sanção do Conselho de Segurança da ONU para o ataque ao Iraque é prova não da irrelevância do sistema multilateral, mas de seu avanço. O mais notório não é que os EUA tenham abandonando essa iniciativa, mas que assim tenham procedido por não obterem o apoio de países inexpressivos como Angola e Guiné.
Pode ficar a impressão de que estamos em uma nova era, em que os impérios não mais são formados pela força de baionetas, mas sim pela pujança tecnológica e econômica e pela disseminação de valores culturais oriundos da metrópole. Mas também aí os EUA vão mal.
Além de sua supremacia econômica estar em declínio no planeta, mesmo dentro de casa as coisas não vão bem. Pode ser que o setor corporativo volte a investir e tenhamos um novo "boom". Mas é igualmente possível, e mais provável, que o mercado imobiliário americano, mantido até agora à custa de juros perigosamente perto de zero, siga o mercado acionário e veja sua bolha especulativa estourar. Com ela, iria junto uma boa parte do valor do mercado financeiro, que usa imóveis sobrevalorizados como garantia de empréstimos. O monumental déficit fiscal criado pelos falcões não ajuda a situação, e qualquer crise golpearia ainda mais o dólar, já pressionado por enormes déficits comerciais de uma sociedade que consome mais do que produz.
A própria dianteira tecnológica dos EUA também pode estar chegando ao fim. Ela foi construída, em grande parte, pela vantagem quantitativa do sistema educacional americano -os EUA historicamente compensaram a falta de qualidade com a quantidade. Na coorte de 66 a 72 anos de idade, por exemplo, 73% dos americanos têm diploma secundário, contra 29% dos franceses. No grupo de 36 a 45 anos, porém, a diferença cai para 87% e 67%, respectivamente.
A única área em que os americanos parecem reinar supremos é na exportação de sua cultura, comprovando a percepção de um de seus comediantes de que ninguém jamais perdeu dinheiro subestimando a inteligência alheia. A admiração pelo "american way of life" fundamenta-se na falácia de que os EUA são os promotores universais da liberdade, democracia e direitos humanos. Quem nisso acredita desconhece o tratamento dispensado aos negros americanos até a década de 60, Hiroshima, Vietnã etc. Mas a colonização cultural vem sempre a reboque da dominância econômica, e cairá sozinha. Resta saber que países ou forças ocuparão o vácuo deixado pelo encolhimento do gigante. Será um século interessante.


Gustavo Ioschpe, 26, é mestre em desenvolvimento econômico pela Universidade ale (EUA) e colaborador do Folha Equilíbrio.


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