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São Paulo, quinta-feira, 10 de julho de 2003

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OTAVIO FRIAS FILHO

Paulistas

A insurreição paulista contra o governo Vargas, da qual se comemorou mais um aniversário ontem, está gravada em pedra no obelisco erigido em honra de seus mártires e congelada numa memória oficial, cívica, que se repete a cada ano. Esse é o destino dessas grandes datas: seu significado se petrifica justamente por obra da reiteração que deveria reavivá-lo.
"Viveram pouco para morrer bem/ morreram jovens para viver sempre." Os versos são do poeta Guilherme de Almeida, ele próprio um canhestro voluntário na frente de batalha de Cunha, a perguntar como se segura "a espingarda", ou seja, o fuzil. Houve muitas mortes (830, segundo estimativas conservadoras), no entanto, nessa que foi nossa única guerra civil num século cheio de revoluções de araque.
Sempre que um bando de pessoas caminha para a morte em nome de idéias somos tomados por um misto de respeito e perplexidade. Essa reação é ainda mais forte numa época em que o cálculo egoísta é o único critério para todas as coisas, em que a expectativa de uma vida longa torna ainda mais aconselhável conservá-la, numa época de covardes, talvez, como é a nossa.
A Revolução Constitucionalista, como ficou pomposamente conhecida, pode não continuar viva nas efígies e nos poemas épicos. Segue ativa, porém, nas lembranças dos que tiveram o privilégio de sobreviver a ela e ainda na projeção histórica dessa memória coletiva, nas modas da historiografia, que oscilam, como toda moda, de maneira pendular.
Nem se deveria dizer que esse movimento é frívolo, pois as diferentes interpretações históricas de um fenômeno, conforme se sucedem negando cada uma a anterior, na verdade se enriquecem e complementam. A Revolução de 32 passou por pelo menos três dessas interpretações. Cada uma correspondeu a um valor que prevalecia na época de sua formulação.
A primeira dessas imagens cristalizou-se a quente, durante os eventos e nos anos seguintes. A revolta aparece envolta em bandeiras e clarins como testemunho da bravura indômita do povo bandeirante. O valor que preside a essa interpretação é o de honra patrícia, ligada ao pertencimento a uma terra de homens livres, que repelem o despotismo da capital (e do sul).
Ao longo dos anos 50 e 60, disseminou-se uma crítica sociológica daquela primeira visão, digamos, literária. Conforme crescia o prestígio da Revolução de 30 como marco da modernização do Estado no Brasil, fixava-se a imagem da Revolução de 32 como movimento reacionário, articulado pelos derrotados na queda da República Velha, não por acaso no Estado que fora seu bastião.
Mais recentemente, porém, voltou-se a enfatizar o caráter democrático de 32. O que antes pareceu formalismo jurídico hoje é visto como arcabouço sem o qual não existe democracia nem liberdade. Em contraste com a imagem de conspiração oligárquica (que ela também foi), a Revolução Constitucionalista contou com um respaldo de massas inédito num país ainda agrário.
Ela foi inovadora num aspecto que chamaríamos midiático, com o uso intensivo do rádio, da imprensa, da música e do cartaz modernista. Criou uma mobilização ideológica forte o bastante para que, nos bondes, mulheres cedessem seu lugar a homens com idade para combater, na ironia de um machismo invertido. Foi uma revolução de idéias, popular e democrática, que adiou a ditadura de Vargas.


Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.


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