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São Paulo, quinta-feira, 10 de julho de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Que reforma agrária?

ANTÔNIO ERNESTO DE SALVO


Se o que a sociedade brasileira deseja é o modelo democrático, tem que haver clara opção do governo por esse caminho

O assunto reforma agrária voltou à tona de forma aguda, com a ajuda preciosa das arruaças do MST e do boné vermelho do presidente. Essa pirotecnia distrai a opinião pública e oculta os problemas maiores, normais quando se pretende resolver assunto tão sério. Reforma agrária pode ter dois cunhos: ser política, ideológica, instrumento da filosofia socialista, ou significar o acesso à terra para uma população vocacionada e necessitada. Como todos são a favor da idéia central, o que permanece indefinido e conflituoso é a escolha e a escala do modelo.
Aí, sim, reside o grande divisor de águas, reunindo, numa vertente, os que têm um projeto político mais amplo, que não podem se permitir uma solução ordenada e consequente, que lhes esvaziaria o discurso. Na outra, majoritária, realmente imbuída do desejo de criar mecanismos que assegurem tal acesso, a vontade inviabiliza-se pela ação provocadora dos primeiros, ativos no afã de manter a inquietação acesa.
Os organismos do poder público encarregados de efetuar as ações que, no seu conjunto, resultariam no assentamento dos necessitados e vocacionados para trabalhar na terra tornam-se reféns da pauta artificialmente criada pelos seguidores da primeira vertente. Ao criarem o fato consumado da usurpação da posse, esses grupos obrigam a intervenção do poder público a fim de evitar o conflito.
Se o que a sociedade brasileira deseja é o modelo democrático, tem que haver clara opção do governo por esse caminho. A ordem tem de ser mantida. Os ajuntamentos dirigidos que produzem pressões potencialmente perigosas não podem ser tolerados. As realidades não podem ser escamoteadas.
As áreas disponíveis para os assentamentos não podem ser acrescidas, por meio de artifícios administrativos ou legais, pela descaracterização da produtividade de outras áreas. Os conceitos que regem o cumprimento da função social da propriedade, tais como descritos na Constituição, têm de ser interpretados com o grau de razoabilidade que o constituinte imaginara e que o bom senso aconselha. Os critérios de produtividade não podem e não devem estar à mercê de um instante de vistoria ou do grau de falácia do técnico do Incra.
A bem da verdade, diga-se que o que vem prevalecendo, há muito tempo, independe do novo governo. A maneira ardilosa, cheia de armadilhas e de má-fé por parte dos que, por lei, devem julgar a produtividade do imóvel é prática antiga. Essa expressão, "produtividade", sempre foi posta com um contraponto -propriedade improdutiva-, que carreia para si forte dose contrária da opinião pública. Só que a verdade não é essa; produzir em menos do que 80% da área ou com índice menor em volume do que o fixado pelo Incra já faz de quem produz um ente classificado como improdutivo.
O bom senso, a justiça dos atos só prevalecerão se o poder público se mantiver no estrito limite das leis e da neutralidade. Os beneficiários das glebas precisam aguardar a vez com paciência, dentro de um processo democrático de prioridade, que também não pode ser usurpado pela ação dos radicais. O assentamento tem que ser assistido. Ser agricultor, de qualquer tamanho, já é difícil, tanto que o mundo rico subsidia fartamente seus empreendedores rurais, para mantê-los com um mínimo de rentabilidade. O que dizer, então, dos pequenos, inexperientes, frequentemente desconhecedores dos mais modestos instrumentos da tecnologia, nossos novos proprietários assentados?
As dificuldades estão no cumprimento dessas diretrizes universais e consensuais. Elas custam muito em dinheiro, tempo, pessoal qualificado e paciência, mas são a vertente possível. Aceitar, tolerar, permitir, conviver com o tipo de ação dos radicais é caminhar para o impasse. É a raiz da violência. Mesmo porque, além de tudo, são os produtores rurais brasileiros que vêm mantendo a viabilidade política de sucessivos governos pela eficiência de seu trabalho.
Manter o nível de segurança mínima numa profissão já naturalmente sujeita aos azares da natureza e dos mercados viciados não é só obrigação do poder público, mas é imperativo da vontade da sociedade e do bem-estar da nação.


Antônio Ernesto de Salvo, 70, fazendeiro e engenheiro agrônomo, é presidente da CNA (Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil).


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