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Direito à saúde, escassez e o Judiciário
OCTÁVIO LUIZ MOTTA FERRAZ
É nesse contexto que se deve questionar a posição do Judiciário de interpretar o direito à saúde como um direito individual ilimitado
A POLÊMICA decisão do governo brasileiro de quebrar a patente do medicamento contra
Aids Efavirenz ilustra bem um importante problema mundial: o alto custo
da saúde e a conseqüente necessidade
de racionamento nessa área.
Certa ou errada a decisão política, o
fato é que o preço de medicamentos
(influenciado pelo regime de patentes) tem claro impacto na capacidade
de qualquer sistema de saúde de atender às necessidades da população.
Quanto mais caro o preço de determinado medicamento, ou se tratam
menos portadores da doença correspondente ou se tratam menos portadores de outras doenças. E assim com
o preço de qualquer outro insumo da
saúde. Não há segredo, é a lógica implacável do "cobertor curto".
É claro que é possível também ampliar os recursos destinados à saúde e
diminuir os destinados a outros bens
e objetivos. O Brasil, notadamente,
gasta pouco com saúde em comparação com outros países de igual nível
de desenvolvimento econômico.
Mas não dá para aumentar esses recursos infinitamente, e mesmo aumentos expressivos jamais serão suficientes para eliminar a necessidade
de fazer escolhas. As necessidades em
saúde são inúmeras e crescentes, os
recursos são escassos, e os custos de
novos tratamentos, cada vez maiores.
Mesmo países ricos enfrentam esse
problema em maior ou menor escala.
É nesse contexto que se deve questionar a posição quase unânime do
Judiciário brasileiro (liderada pelo
Supremo Tribunal Federal) de interpretar o direito à saúde como um direito individual ilimitado a todo e
qualquer tratamento, procedimento
ou medicamento.
Em número cada vez maior de
ações judiciais, nossos juízes vêm ordenando aos serviços públicos de saúde, em todos os níveis da Federação,
que financiem tratamentos originariamente não contemplados na política de saúde elaborada pelas respectivas secretarias e Ministério da Saúde.
Esses tratamentos muitas vezes são
de elevadíssimo custo, disponíveis
apenas no exterior e, freqüentemente, tão ou menos eficazes que os disponíveis no sistema público de saúde.
Diante da escassez de recursos, a
conseqüência dessa interpretação
não é, ao contrário do que se poderia
imaginar, a ampliação do acesso a serviços de saúde a camadas da população anteriormente excluídas.
O resultado inevitável é, na verdade, uma substituição parcial das prioridades de investimento estabelecidas pelos especialistas em saúde pública do Poder Executivo. Ou seja, puxa-se o cobertor da saúde pública para aqueles que conseguiram acessar o
Judiciário e se descobre parte daqueles que a política estatal havia originariamente decidido contemplar.
Como as camadas mais desfavorecidas da população ainda encontram
obstáculos importantes no acesso à
Justiça, essa atitude implica não só
problemas de eficiência mas também
riscos à eqüidade na distribuição dos
recursos escassos da saúde.
Esse quadro parece reforçar a posição dos críticos da "justicialidade" do
direito à saúde e outros direitos sociais, para os quais juízes não teriam
legitimidade democrática ou capacidade técnica para interferir em complexas áreas como a da saúde.
Para outros, porém, isso significaria verdadeira abdicação do Judiciário de sua função de protetor dos direitos fundamentais e conseqüente
desvalorização do direito à saúde, que
ficaria totalmente à mercê da vontade
política de nossos governantes, historicamente insuficiente, como vimos
acima, para financiar um sistema público de saúde adequado.
Não há dúvidas de que o Judiciário
é posto em situação extremamente
difícil quando é chamado a proteger o
direito à saúde e outros direitos sociais reconhecidos na Constituição.
Simplesmente ignorar que tais direitos dependem de políticas públicas
complexas, que têm custos e que os
recursos para atendê-los são escassos, porém, não é resposta adequada a
esse importante desafio.
O direito à saúde deve ser interpretado como um direito à igualdade de
condições (eqüidade) no acesso aos
serviços de saúde que determinada
sociedade pode fornecer com os recursos disponíveis.
É essa a interpretação mais adequada do artigo 196 da Constituição, que
garante "acesso universal e igualitário" aos serviços e ações de saúde. É
ainda corroborada pelo principal tratado internacional ratificado pelo
Brasil para a proteção dos direitos sociais, que impõe aos Estados o dever
de protegê-los progressivamente "até
o máximo de seus recursos disponíveis". (artigo 2º do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais
e Culturais).
OCTÁVIO LUIZ MOTTA FERRAZ, 35, mestre em direito
pela USP e doutor em direito pela Universidade de Londres, é professor de direito na Universidade de Warwick
(Reino Unido). Foi assessor sênior de pesquisa do relator
especial da ONU para o direito à saúde (2006).
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