São Paulo, terça-feira, 10 de agosto de 2010

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O direito à recuperação

CARMEN SILVEIRA DE OLIVEIRA


Meninas e meninos nessa situação têm suas vidas marcadas pela ausência de oportunidades de estudo, lazer e convivência familiar

Esta Folha resgatou na quinta-feira (5/8) o caso da menina detida ilegalmente em novembro de 2007, aos 15 anos, numa cela, na cadeia de Abaetetuba (PA), com quase 30 homens, onde foi vítima de violência sexual e tortura.
A ocorrência teve ampla repercussão na mídia nacional e internacional e chocou a sociedade. Imediatamente assistida, a adolescente e seus familiares ingressaram no Programa de Proteção à Criança e ao Adolescente Ameaçados de Morte (PPCAAM), da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, onde permaneceu nos últimos três anos.
A matéria "Vida em looping", de Eliane Trindade, pretendeu demonstrar a impossibilidade de sua recuperação, descrevendo-a como drogada irrecuperável que, para sustentar o "vício", se prostituía pelas ruas do Distrito Federal como "uma ratazana".
Além disso, sugere sua criminalização e a transforma em algoz do seu próprio destino, desqualificando a sua condição de vítima e de reiteradas violações de seus direitos.
Eliane oculta o fato de que meninas e meninos nessa situação têm suas vidas marcadas pela ausência de oportunidades de estudo, lazer e convivência familiar e suas trajetórias são caracterizadas, em geral, pela situação de rua e violência sexual, ou seja, acabam condenados a vivências que comprometem todo seu processo de desenvolvimento.
Essa realidade, inclusive, foi retratada pela mesma jornalista em seu livro "As Meninas da Esquina", em abordagem completamente diferente. No livro, a repórter aborda temas como trajetória de rua, violência sexual e o uso de álcool e de drogas que, segundo ela, estabelecem entre si um "ciclo vicioso, já que a dependência de álcool e drogas torna mais difícil a saída de uma situação de exploração", aumentando o risco de morte, em função das relações estabelecidas na rua, com o crime organizado e o narcotráfico.
Apesar de ter entrevistado diversos profissionais envolvidos com o atendimento da adolescente, o texto se apoia nos relatos de uma "amiga" e de uma traficante.
Ao não levar em consideração outras fontes de informação, deixou margem para que o caso fosse apresentado de maneira preconceituosa e estigmatizante. Ao descrever o percurso da menina dessa forma, também deslocou o foco da imperiosa necessidade de responsabilização dos agentes públicos e demais envolvidos.
Desconsiderando o fato de que a adolescente se encontrava em programa de proteção, a jornalista ignorou os alertas reiterados da Secretaria de Direitos Humanos feitos à Folha, desde o final de 2009, de que a exposição da menina a levaria a uma nova situação de vitimização, revivendo atrocidades perpetradas em sua história.
Ademais, a revelação de informações acerca de supostos atos praticados por ela fere o Estatuto da Criança e do Adolescente.
Por fim, mensura os "gastos" feitos com o atendimento da jovem e os considera desperdício de recursos públicos, dado o pouco retorno. No entanto, é importante deixar claro que a criação do Programa de Proteção, em 2003, veio saldar minimamente a dívida histórica do Estado brasileiro com a infância e a adolescência com direitos violados.
Diante dos dramáticos índices de homicídios nessa faixa etária, é nossa prioridade garantir o direito à vida, sem medir recursos e esforços. O que não se pode desperdiçar são vidas. A aposta em resgatar crianças e adolescentes nessas situações deve ser uma missão permanente de toda a sociedade, inclusive da mídia.


CARMEN SILVEIRA DE OLIVEIRA, doutora em psicologia clínica, é secretária nacional de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República.

Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br


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