São Paulo, quarta-feira, 10 de agosto de 2011

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Menos mercado 2

CALIXTO SALOMÃO FILHO


Estranhos e preocupantes devem ser os tempos em que os mercados contam com mais espaço na mídia que seres humanos em penúria

Há cerca de três anos, escrevi nesta coluna artigo com o mesmo título ("Menos mercado", "Tendências/ Debates", 15/10/2008). Naquela época, o "primeiro mergulho" da economia mundial era claramente imputável à existência de um mercado (derivativos de dívidas imobiliárias) que, por sua complexidade e por seu risco, nunca deveria ter existido.
Passados três anos, e nos albores de um (possível) segundo mergulho, muitas questões parecem irresolvidas; outras se agravaram.
Dentre as que se agravaram, talvez até porque originárias de problemas não resolvidos, está a questão do contágio entre mercados. Problemas reais, mas relativamente pequenos para a economia mundial (como o da Grécia), e problemas grandes, mas de maior motivação política que econômica (como o dos EUA), acabam, devido à interconexão entre mercados, contaminando economias saudáveis.
Duas são as causas básicas desse estado de coisas. O primeiro poder-se-ia chamar de institucionalização do pânico. Tem ele razões históricas. Momentos de grande especulação e de supervalorização da esfera financeira são sempre momentos de enorme covardia econômica.
O dinheiro ganho sem esforço na ciranda financeira cria nos especuladores quase que a certeza de sua punição. Na melhor tradição cristã, ao prazer deve-se seguir a culpa. Assim, crises de pânico irracional tornam-se regra, não exceção.
Aqui, mais uma vez é bom lembrar que os períodos mais produtivos e de melhoria tecnológica da história do capitalismo foram aqueles em que a especulação financeira recuou se comparada ao setor produtivo. Ao contrário, as épocas de especulação (e ganho) financeira desmesurada sempre foram indícios de decadência e marcam fim de períodos históricos precedentes (é o caso do capitalismo liberal e da crise financeira que o sucedeu, dando início à Grande Depressão).
A segunda causa está no contínuo descaso jurídico em relação à especulação financeira internacional. Em três anos, nada ou praticamente nada se fez em matéria de regulamentação financeira global.
A ideia de limitação aos fluxos especulativos, necessidade evidente desde 2008, morreu na praia, na captura dos governantes (particularmente o norte-americano) pelos interesses do sistema financeiro. Essa situação não pode perdurar.
Se o século 20 foi o das grandes decisões econômicas na esfera internacional, o século 21 tem de ser o das grandes decisões ético-jurídicas. Afinal, estranhos e preocupantes devem ser os tempos em que mercados tomam mais espaço na mídia que humanos em penúria.
Menos mercado é necessário para que nossas preocupações possam voltar-se a problemas reais e prementes na arena internacional.
A nota dada por agência de avaliação de risco à dívida dos EUA não pode nos influenciar (e muito menos preocupar), e uma nova regulamentação financeira internacional deve nos proteger desses efeitos.
A situação humanitária na Somália, na sempre esquecida faixa de Gaza e em tantas outras regiões do mundo, essas, sim, devem nos chocar e apavorar, levar a uma reafirmação dos direitos humanos na esfera internacional e mover a luta por sua efetividade, acima e por cima dos interesses políticos e geopolíticos dominantes.

CALIXTO SALOMÃO FILHO é professor titular de direito comercial da Faculdade de Direito da USP e professor do Institut de Sciences Politiques (Sciences Po) de Paris.

Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br


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