São Paulo, quinta-feira, 10 de novembro de 2005

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DEMÉTRIO MAGNOLI

Contra Haussmann

A Revolução de 1848, a "primavera dos povos", foi na França essencialmente uma revolta urbana em Paris. Ela se encerrou, de fato, com a coroação de Luís Bonaparte como imperador Napoleão 3º, em 1852. Sob o novo império, e com a assinatura do barão Haussmann, prefeito da capital entre 1853 e 1870, nasceria a Paris moderna.
Haussmann destruiu a cidade medieval, arrasando os densos e miseráveis quarteirões da região central, na Île de la Cité, e implantando a rede dos grandes bulevares, com suas perspectivas infinitas. A tríade de artérias radiais, obras de saneamento e parques e edifícios públicos produziu um padrão de segregação espacial de tipo centro-periferia. A reconstrução urbana representou a invenção simultânea das "rives de la Seine", o domínio das classes abastadas, e das "banlieues", os subúrbios populares.
Barricadas, nunca mais! Foi sob esse programa que Haussmann projetou a nova cidade. A Comuna de Paris, em 1871, assinalou o fracasso circunstancial do empreendimento, mas não evitou a reiteração de seu paradigma por meio de ciclos sucessivos de demolições e expansão das "banlieues". O ciclo mais recente, instigado pelas barricadas do Maio de 68, deu-se sob Georges Pompidou, com a "revitalização" das regiões de Les Halles e do Beaubourg, e sob François Miterrand, com os "Grandes Projetos".
Os distúrbios atuais não envolvem barricadas. A sedição é um fenômeno dos subúrbios de Paris que se disseminou como um rastilho pela França. A fratura urbana manifesta uma fratura social e cultural. Os jovens árabes e africanos, filhos de imigrantes, experimentam a fronteira invisível da segregação espacial como exclusão política e econômica. Eles são desempregados, mas não miseráveis. Têm escolas e hospitais. Querem o respeito que seus pais não tiveram: a fagulha da extensão dos distúrbios foi a palavra "escória", que saltou da boca do ministro do Interior, Nicolas Sarkozy.
Por que a França? No país da Revolução e do direito da terra, a nação é um contrato. A república promete a todos os seus habitantes a identidade francesa: liberdade, igualdade, fraternidade. Os jovens que incendeiam carros não querem ser o "outro", a colônia incrustada na metrópole, o gueto cultural tolerado nos confins da cidade, as sombras "perigosas" nas estações da periferia. Exigem emprego e a visão de um futuro. O contrato republicano. A cidadania inteira.
Há uma fratura política. Nenhum partido francês representa ou dialoga com esses jovens. A sua sedição desenrola-se fora da esfera da política, no plano estéril do vandalismo. Jean-Marie Le Pen, o chefe da extrema-direita, interpretou-a como uma "guerra civil". É a senha para a intervenção do Exército, o esmagamento do "inimigo" e a deportação dos "estrangeiros". A conclamação de Le Pen ecoa na mídia ocidental, traduzida na linguagem obscurantista do "choque de civilizações": a "intifada européia", como quer o colunista Nelson Ascher.
Os jovens amotinados não protestam contra a "lei do véu" nem portam a bandeira da jihad. Mas, como eles não falam, outros falam por eles, costurando a teia discursiva da "guerra ao terror". Essa operação de vandalismo intelectual, destinada a alinhar a Europa à política mundial de Washington, é mais um préstimo dos fanáticos do Ocidente aos fanáticos de Osama Bin Laden.


Demétrio Magnoli escreve às quintas-feiras nesta coluna.
@ - magnoli@ajato.com.br


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