São Paulo, Quinta-feira, 11 de Março de 1999
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Brancaleone

CARLOS HEITOR CONY


Rio de Janeiro - Com seu esfrangalhado exército de cinco homens, Brancaleone aderiu a um grupo de penitentes numa cruzada contra os infiéis. Mestre em blabláblá e retórica, logo o liderou na heróica marcha, sob o tradicional lema: ""Deus vult!" (Deus o quer!).
No dia da luta, ele foi olhar o campo de batalha: viu o horizonte tomado de ponta a ponta por infiéis superarmados. Não se apertou. Saiu-se com a mesma grandiloqüência: ""Deus non vult!" (Deus não quer!).
Lembro a cena do filme de Monicelli a propósito da súbita mudança de opinião do governo. Vejo na mídia o desfile das autoridades monetárias, coadjuvadas por economistas e colunistas que lhes são simpáticos ou beneficiários. Garantem que tudo vai bem. Um deles chegou a dizer que a situação da economia brasileira é positiva.
Motivo: o Banco Central agora está certo (antes não estava?), o FMI abriu paternais exceções no acordo, aceitou déficit primário como base disso ou daquilo, soltou alguns caraminguás para que FHC possa pagar aos especuladores de dentro e principalmente de fora.
Tudo bem: ""Deus vult" assim.
Três meses atrás era ""Deus non vult". Não haveria ataque ao real, o Brasil não era a bola da vez, pelo contrário, o país era maior do que a crise. A violenta mudança de opinião ainda não mereceu a explicação tão cara a FHC: ""Nunca disse isso!".
Enquanto o pessoal do governo e sua periferia desenrolam as razões da neoeuforia, o Brasil real contradiz o Brasil do real pré e pós aquela sexta-feira de janeiro.
Prever que a inflação vai ser de tanto é o mesmo que prever a quantidade de chuva que vai cair em São Paulo na véspera do próximo feriadão.
Eu ia dar a esta crônica o título meio esquisito de ""neoeuforia". Preferi o Brancaleone porque, além do seu entusiasmo pela irrealidade, ele e seu esmolambado exército lembram a nossa situação, na qual fazemos o costumeiro papel de penitentes.


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