São Paulo, Quinta-feira, 11 de Março de 1999
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Liberalismo, igualdade e equidade


Sob o ponto de vista da moral liberal, igualdade e equidade são princípios políticos e morais diferentes


MARCO MACIEL

O que diferencia o liberalismo político da democracia é exatamente o fundamento moral de ambos. Os valores fundamentais e permanentes da democracia são a liberdade e a diversidade. A primeira é entendida como o princípio sob o qual se deve fundar a organização política da sociedade; a segunda, como o preceito que, calcado na liberdade, leva necessariamente ao pluralismo.
Do ponto de vista político, a adição parece clara. Os fundamentos morais do liberalismo estabelecem não existir liberdade sem igualdade nem pluralismo -ou diversidade- sem equidade. Etimologicamente, igualdade e equidade se equivalem. Mas, no âmbito da filosofia política, é preciso distingui-los como valores autônomos.
A liberdade não é valor ambíguo nem unívoco. Entendo por liberdade política a garantia, expressa nas Constituições contemporâneas, do exercício do livre-arbítrio ou da livre escolha, bem como do valor moral de que o homem é dotado para fazer suas opções, sem o risco de sofrer punições. Mas, como se sabe, é clássica a distinção entre liberdade "de" e liberdade "para", entre as liberdades positivas e negativas.
A filosofia liberal defende um regime político que assegure liberdade com igualdade, o primeiro dos fundamentos morais do liberalismo. Quando os teóricos mais influentes do liberalismo político, como Tocqueville ou Benjamin Constant, proclamam que não há liberdade sem igualdade, estão discutindo a questão central do poder -que não se esgota na sua simples divisão, como princípio de organização democrática, mas vai além, procurando escrutar a distribuição desse poder: é exatamente nela que reside a possibilidade de assegurar a igualdade.
Quando o artigo 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, dispõe que "todos os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos" e que "as distinções sociais não podem ser fundadas senão na utilidade comum", torna-se evidente que a defesa da igualdade tem um caráter utilitário, como assinalou Bentham.
Esse pressuposto nos permite falar não de uma sociedade em que todos sejam iguais, pois isso implicaria o fim do pluralismo e da diversidade, mas daquela em que todos devem ter iguais oportunidades na "busca da felicidade" a que alude a Declaração de Independência dos EUA, de 1776. Nesse sentido, o princípio moral da igualdade política, fundamento da concepção liberal de igualdade de oportunidades para todos, distingue-se claramente do chamado igualitarismo das sociedades sem classe a que fazem menção os filósofos socialistas (utópicos, como Fourier, ou revolucionários, como Marx).
Uma sociedade em que haja igualdade de oportunidades para todos (que se traduz na idéia de que todos devem partir do mesmo ponto para chegar a fins e objetivos diversos) é, portanto, moral e politicamente distinta da sociedade igualitária socialista e até da sociedade conservadora que precedeu o liberalismo, fundada na convicção de que a regra do tratamento idêntico para todos, a despeito de sua desigualdade, devia prevalecer em qualquer circunstância. A idéia liberal da igualdade, ao contrário, parte do pressuposto de que não é possível tratar igualmente os desiguais. É nisso que reside seu segundo pressuposto -o da equidade.
A idéia de equidade difere da de igualdade: a primeira exige um tratamento diferenciado para todos, a segunda preconiza exatamente o contrário. É exatamente o ideal da Justiça liberal de que fala John Rawls. Se o ideal da Justiça é a equidade, seu fim é permitir que todos tenham um tratamento equitativo -o que não quer dizer igual, mas diferenciado. Por tratamento igual pressupõe-se o mesmo para todos, independentemente de condição econômica ou social. O tratamento equitativo impõe eliminar a diferença econômica e social, para que o veredicto seja justo e, só nessas condições, equânime.
A igualdade é o princípio pelo qual todos devem contribuir com a mesma parcela para o bem comum; a equidade, aquele em que as contribuições são repartidas proporcionalmente, não por igual. Logo, sob o ponto de vista da moral liberal, igualdade e equidade são princípios políticos e morais diferentes. O último é compensatório, não meramente regulatório. Aquele que possui maior quantidade de bens deve contribuir mais, proporcionalmente, do que aquele que possui menos.
O problema da distribuição do poder na sociedade liberal é, por consequência, a questão central do liberalismo, que o diferencia do fundamento ético da democracia política, baseado na igualdade mesmo entre os desiguais.
Assim, enquanto o princípio utilitário da democracia é a garantia de liberdade e igualdade de tratamento para todos, o do liberalismo é não só isso, mas algo mais transcendente: a busca da equidade. Por isso, pode-se dizer que o fundamento ético da política liberal é o mesmo da Justiça liberal.
Quando falamos em política e em Justiça liberais (calcadas ambas na garantia de liberdade com igualdade de oportunidades, porque só assim se assegura a equidade), necessariamente aludimos à desigualdade na distribuição do poder, seja ela manifesta no poder político propriamente dito, seja nas garantias econômicas ou mesmo nas conquistas sociais. É preciso não esquecer que a primeira concepção utilitária de igualdade social (concebida como um sistema político que assegure o bem-estar social) se deve a um dos maiores liberais do século, lorde Beveridge, a quem coube formular a primeira política pública com esse fim.


Marco Maciel, 58, é vice-presidente da República. Foi governador de Pernambuco (79-82), senador pelo PFL-PE (82-94) e ministro da Educação (governo Sarney).



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