UOL




São Paulo, sexta-feira, 11 de abril de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

Cem dias de neoconservadorismo

JORGE BORNHAUSEN

Quem diria , os esquerdistas empedernidos que consideravam insulto o apelido de neoliberais e que o aplicavam pejorativamente aos adversários de qualquer latitude agora são fervorosos neoconservadores!
Esta patética contradição do governo Lula pode não ser a única, nem a mais desastrosa, talvez seja a mais positiva, mas é certamente a mais irônica.
Uma reflexão sobre esse primeiro período de referência do novo governo -cem dias são uma marca emblemática- mostra que, se as contradições são os aspectos mais sensacionais, houve também paralisia, retrocessos e imprudências. São as quatro pragas dos cem dias do presidente Lula.
Confesso que, em janeiro, vendo pela TV as comemorações inaugurais do novo governo, lembrava de uma cena dos programas eleitorais da campanha de Lula: dezenas de mesas-redondas, com especialistas e políticos qualificados. O candidato circulando, como se apresentasse sua equipe. Imaginei que, no dia seguinte à abertura do Congresso, 16 de fevereiro de 2003, Câmara e Senado seriam inundados por projetos e emendas constitucionais e ninguém teria fôlego, neste país, em face do novo governo.
Vejo agora o engodo em que caímos todos, especialmente seus eleitores.
Se houvesse Procon eleitoral, o presidente Lula e o PT seriam recordistas absolutos de queixas e reclamações.
O governo, na verdade, é um sistema de contradições.


Se houvesse Procon eleitoral, o presidente Lula e o PT seriam recordistas absolutos de queixas e reclamações


Primeiro, ideológico. O esquerdismo foi substituído pelo neoconservadorismo econômico e, ainda por cima, praticado canhestramente. Vimos isso no diagnóstico da inflação. Deram como causada pela demanda, e não pela forte desvalorização do real. Consequentemente, aplicaram o remédio errado. O aumento dos juros e do compulsório dos bancos só serviram para contrair negócios, sinalizar para o risco de recessão e de desemprego, além, o que é pior, de aumentar a dívida pública. Só depois, e sem corrigir o erro cometido, a área econômica do governo Lula aumentou o percentual do superávit primário, que, aliás, poderia ser bem maior, uma vez que penaliza o grande gastador, o verdadeiro perdulário, o próprio governo.
Sempre me pareceu insustentável a negação completa da teoria econômica, que era base da oposição petista ao governo FHC. Mas, daí ao governo Lula assumir o ideário econômico neoconservador, é um brutal exagero, uma rota à direita inimaginável cem dias atrás.
As contradições não param aí. Que dizer, então, da criação de ministérios e secretarias apenas para empregar companheiros derrotados nas eleições estaduais, independentemente das respectivas qualificações? Estamos assistindo à maior onda de compensação de derrotados da história do Brasil. Sem falar da politização da administração de órgãos como a Embrapa, o IBGE, a Funasa e o Incra, que já haviam alcançado o saudável nível da profissionalização. Esse comportamento, nitidamente fisiológico, compromete o uso e abuso da palavra ética pelos petistas, quando eram oposição. Agora, no poder, aposentaram-na. Na verdade, falava-se de ética apenas para desqualificar os adversários como "não-éticos".
Outra contradição: o novo salário mínimo foi fixado em R$ 240, com ínfimo aumento real, que os cálculos mais confiáveis dizem que não passa de 1,85%. Alegou-se que o teto foi baixo por "razões orçamentárias", ou seja, as mesmas alegações que o PT recusava, quando apresentadas nos anos anteriores pelo governo FHC... Quer dizer, então, que as mesmas alegações agora valem? E por que antes "não valiam" e o salário mínimo devia ser de US$ 100?
Perplexo, vendo o governo Lula celebrar tão euforicamente seus cem dias, o povo brasileiro, que não é desmemoriado, interroga-se, parodiando o fecho do "Soneto de Natal", de Machado de Assis: mudou a aritmética ou os R$ 240 do salário mínimo do PT equivalem aos US$ 100 que o mesmo PT exigia quando era oposição?

Jorge Bornhausen, 65, senador pelo PFL de Santa Catarina, é presidente nacional do partido.


Texto Anterior: Frases

Próximo Texto: Fernando Cardim de Carvalho: Oito mitos da política macroeconômica

Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.