São Paulo, Domingo, 11 de Abril de 1999
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O diálogo e a revolução conservadora


Estaria o presidente disposto a um diálogo sob a premissa de que seu modelo econômico pode estar errado?


TARSO GENRO

Há uma revolução globalitário-conservadora em curso no país. Embora a democracia, como conjunto de instituições políticas, tenha na sua origem uma forte carga distributiva de poder e de benefícios materiais, o regime democrático na era da globalização reforça o convívio do liberalismo econômico (que deifica o mercado e alimenta a exclusão) com o liberalismo político (que garante a vigência cada vez menos efetiva dos direitos da cidadania).
O mercado e a vigência formal da democracia conciliam-se e integram-se na nova cultura conservadora da era da globalização. Ela é produto de um pacto de dominação específico dos países semiperiféricos: une as oligarquias nordestinas de Antonio Carlos Magalhães, as corporações transnacionais, seus banqueiros multinacionais e as agências financeiras do cassino global. Todo o resto (empresários de todos os portes, assalariados, classes médias), independentemente das vantagens ou prejuízos advindos do modelo, fica "fora" da sua condução política.
A cultura globalitário-conservadora alimenta a "naturalização" das relações sociais e produz uma audiência social passiva em relação a fatos estarrecedores. Lembremos três deles, farta e corajosamente divulgados pela Folha. Os bancos estrangeiros ganharam fortunas com a crise do real, especulando em dólar; no Nordeste, morreram mais crianças de doenças e desnutrição em 1998 do que no ano anterior; o nível de desemprego e violência nas regiões metropolitanas nunca foi tão alto. Mesmo assim, nada pode atingir a legitimidade e a estabilidade do governo Fernando Henrique Cardoso. Ele é precioso demais para os grandes interesses que estão na base do modelo em andamento.
Essa cultura, produzida e orientada pelo governo e por seus defensores (pagos ou ideológicos), é autorizativa e impõe sanções. Traça os limites da oposição e autoriza a reprodução moderada de críticas pontuais, que não impugnam o processo econômico, colocando-as inclusive na agenda política: críticas ao Judiciário, à corrupção (municipal), ao nepotismo, à falência do real e aos gastos públicos "supérfluos" ("gastos sociais", como mostrou Aloysio Biondi, Dinheiro, pág. 2-2 de 3/4). Mas ela também impõe sanções pesadas quando a oposição, em situação de impotência e fragmentada, vai além do tido como aceitável e focaliza o símbolo do processo -ou seja, o presidente. Quando isso ocorre, a crítica é barrada, porque ele simboliza o caminho único, que não pode ser questionado: o governo conduz o governo e conduz a oposição aos seus limites.
O presidente, impune e imune às críticas, já governa completamente alheio aos limites da ordem, o que estimula o surgimento de uma oposição "fora da ordem". Ressalte-se, porém, que nenhum gesto da oposição de esquerda, até agora, saiu dos limites da Constituição; nenhuma ação oposicionista no Parlamento agrediu a Carta; nenhuma proposta de oposição, até agora, feriu princípios constitucionais. As lutas do MST, as eventuais obstruções no Congresso, a moratória de Itamar e o pedido de renúncia de Brizola não agridem normas constitucionais. A postura ponderada e altruísta de Lula, que sinalizou a possibilidade de um diálogo, não teve nenhum retorno sério.
Ocorre que o presidente está impedido de dialogar. A crise mundial atual envolve, como projeto do neoliberalismo, a transição para outro regime de acumulação e outro modo de regulação. Esse projeto tem como finalidade irrenunciável a substituição da soberania do Estado-nação clássico (como unidade básica do cálculo e do projeto econômico) por um novo tipo de "Estado transnacional" -cujo desenvolvimento é de longo curso e cujo desfecho ainda não está definido.
Nessa "conclusão" é que o governo fixa sua "legitimidade" conservadora, que constitui, ao mesmo tempo, seu impedimento para dialogar: para ele, o desfecho moderno é a interdependência subordinada de um novo tipo de Estado-nação. O resto é atraso, "esquerdismo" ou "getulismo". Esse é o núcleo ideológico de seu consenso manipulado e de sua verdade forjada.
Dessa pretensão de verdade (seria melhor dizer petulância teórica) é que o governo FHC retira a arrogância, a insensibilidade, a maldade social e a vocação puramente economicista. As políticas do Estado são rebaixadas a um sistema de mera chancela da "nova soberania", emanada das grandes corporações privadas que fazem a economia global. Não é, na verdade, mais "radicalismo" ou mais "moderação" o que confunde as oposições, mas é um juízo sobre os desdobramentos econômicos concretos da ordem global atual e sobre seus efeitos nos destinos nacionais. Haverá um país depois de tudo?
Estaria o presidente disposto a abrir um diálogo com a oposição de esquerda sob a premissa de que o modelo econômico por ele dirigido pode estar errado e ser nocivo às futuras gerações? A natureza do modelo e suas consequências perversas poderiam ser objeto de negociações sérias com o governo?
O presidente não pode e não quer gerar condições para esse diálogo por estar amarrado à visão fechada de que seu modelo é o único caminho. Não inicia nem pode iniciar conversações sobre a questão central, o modelo econômico, que subsidia a cultura globalitário-conservadora e ao qual se subordinam todas as outras questões. Isso faria supor que o crupiê poderia anular o jogo, gerando desconfiança nos jogadores do cassino. O país está encurralado na repetição dogmática do caminho único.


Tarso Genro, 52, advogado, é membro do Diretório Nacional do PT. Foi prefeito de Porto Alegre (RS) de 1993 a 96 e deputado federal de 1989 a 90. É autor de "Na Contramão da Pré-História" e de "Utopia Possível".



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