São Paulo, domingo, 11 de setembro de 2005

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Haiti: um grande desafio

AUGUSTO HELENO RIBEIRO PEREIRA


Desculpas adiam providências urgentes e obrigam os militares a ações humanitárias que fogem a sua alçada
Há 11 dias, passei o comando da força militar da Missão da ONU para Estabilização do Haiti (Minustah) ao general Urano Bacellar. Vivi, durante 15 meses, uma experiência fantástica, pessoal e profissional. Comandei um efetivo de 6.250 militares "capacetes azuis", reunindo contingentes de 13 países, sete deles latino-americanos, e oficiais de Estado-maior de 23 nações. Todos deram tudo de si para cumprir cabalmente as missões recebidas.
A caótica realidade socioeconômica do país levou-me a concluir, de imediato, que construir um ambiente seguro e estável seria viável se combinássemos segurança com projetos de infra-estrutura e desenvolvimento. A doação de mais de US$ 1 bilhão, na Conferência de Washington, em julho de 2004, fez-me crer que canteiros de trabalho, tropas e polícia desdobrar-se-iam, simultaneamente, pelas diversas regiões do país.
Entretanto desculpas inconsistentes continuam adiando providências urgentes no campo econômico e social, obrigando os militares a realizar ações humanitárias que fogem a sua alçada.
Várias vezes, expressei minha discordância quanto à estratégia adotada pela "comunidade internacional" em relação ao Haiti. Fazia eco às manifestações de desapontamento do embaixador chileno Juan Gabriel Valdés, representante especial do secretário-geral da ONU e chefe da missão, e dos governos de países latinos. O Brasil e a Espanha ameaçaram, inclusive, retirar seus efetivos militares. Até agora, pouquíssimo aconteceu de prático e visível.
Deixei o Haiti convicto de que somente a geração maciça de postos de trabalho melhorará as condições de vida e criará uma esperança de futuro para os jovens haitianos. Exigir uma segurança impecável para aplicar recursos quando 80% da força de trabalho não possui emprego formal e 70% do povo sobrevive miseravelmente com uma refeição diária soa utópico e até mesmo cruel.
Até agora, cabe quase que exclusivamente aos vetores de segurança criar condições para o cumprimento da resolução do Conselho de Segurança da ONU. Um desses vetores, a Polícia Nacional do Haiti (PNH), única força legal do país, reconhecidamente destemida, enfrenta sérios problemas de equipamento, pessoal e adestramento, além de ser alvo de acusações freqüentes de envolvimento em atos ilícitos. Por isso, operações conjuntas, necessárias e inevitáveis, constituem, sempre, fator de risco para os capacetes azuis.
Li e ouvi acusações contra a Minustah. Injustas e precoces, esquecem que a instalação de uma missão de paz advém de uma série crise e da necessidade de evitar um mal maior. No caso do Haiti, inegavelmente um grande desafio, até os pessimistas de plantão reconhecem que, sem a intervenção da ONU, teria explodido uma sangrenta guerra civil.
A Minustah, apenas em dezembro de 2004, atingiu um efetivo próximo do previsto pelo mandato. Ainda assim, realiza um profícuo trabalho. Há cinco meses, o interior do Haiti encontra-se inteiramente calmo. Porto Príncipe, capital do país, viveu, em maio e junho, um pico de violência. O número de seqüestros cresceu, e ações de gangues armadas contra estabelecimentos comerciais e industriais ameaçaram a frágil economia haitiana. Por coincidência, renovávamos, à época, os contingentes responsáveis pela segurança da cidade: Brasil, Jordânia, Peru e Sri Lanka.
Graças à atuação conjunta de militares, PNH e polícia internacional, controlamos a situação, e a cidade retomou a tranqüilidade. O terceiro contingente brasileiro, melhor treinado e valendo-se da experiência dos anteriores, restabeleceu, apoiado pela população, a lei e a ordem no bairro crítico de Bel Air. Resta, ainda, uma única área problema: a paupérrima e gigantesca favela de Cité Soleil, com cerca de 300 mil habitantes, isolada e subjugada a gangues que, diariamente, enfrentam, à bala, as patrulhas de capacetes azuis.
A situação exigirá um trabalho duro, persistente e demorado, incluindo ações de governo, em uma solução compatível com uma força de paz, sem o uso indiscriminado da violência, como desejam alguns inescrupulosos.
As eleições acontecerão, com certeza. Mais de 400 postos, espalhados em todo o país, já acolheram mais de 2 milhões de inscritos, sem qualquer incidente relevante. Como insiste o embaixador Valdés, não serão eleições austríacas nem suíças. Esperamos dos julgadores a mesma tolerância demonstrada ao analisar pleitos efetuados, recentemente, em outras zonas "quentes".
Penso que o futuro do Haiti depende, fundamentalmente, da participação solidária dos países latino-americanos. Nossa familiaridade com problemas semelhantes poderá ajudar o futuro governo na busca de soluções viáveis e duradouras.
Espero que o fantástico e sofrido povo haitiano, pioneiro na conquista da sua independência, assuma o papel que lhe cabe, esqueça as desavenças do passado, aproveite a presença estrangeira (bem-intencionada e financeiramente poderosa), escolha bem os seus futuros governantes e se una em torno de um pacto de governabilidade, capaz de restabelecer a democracia e o Estado de direito, reconstruir o país e pavimentar um futuro melhor.
Augusto Heleno Ribeiro Pereira, 57, general-de-divisão combatente do Exército brasileiro, foi comandante militar da Missão das Nações Unidas para Estabilização do Haiti (Minustah) de junho de 2004 a setembro de 2005.

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