São Paulo, quarta-feira, 11 de outubro de 2000

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ANTONIO DELFIM NETTO
Concorrência e espionagem

Para um mercado ser eficiente é preciso que todos os seus participantes tenham o mesmo grau de informação. Se há assimetria de informação, o mercado funciona mal. E, se um dos participantes tem informações privilegiadas, ele positivamente não funciona. Quando as informações têm de ser procuradas pelo próprio agente, elas têm um custo privado que a partir de certo ponto limita o seu uso, quer por questões financeiras (custo/benefício), quer por temor à violação das leis. Mas e se o agente produtor da informação é um Estado, que pode quebrar códigos diplomáticos, usar tecnologia de última geração e sustentar uma rede mundial de espionagem financiada por seu orçamento e, no fim, a entrega gratuitamente ao agente privado? Diante desse monstro (se ele existir), falar em "mercado" e "concorrência" soa como uma piada de muito mau gosto.
Pois há sérias suspeitas de que ele exista. Pelo menos é o que nos informa Jean-Charles Brisard, num magnífico artigo publicado na revista "Défense Nacionale", nš 7, julho de 2000. Segundo Brisard, "a mutação do ambiente geoestratégico, depois da queda da União Soviética, conduziu a uma redefinição das missões dos serviços de informação americanos. Ao longo dos anos 90, instituiu-se como seu objetivo "o suporte ao desenvolvimento econômico e comercial das empresas privadas americanas". Já em 1992, o diretor da CIA, sr. Robert Gates, num discurso em Detroit, afirmava a "importância fundamental e crescente das questões econômicas internacionais para a comunidade de informação" e que "40% das novas ocupações da agência são de ordem econômica'".
Esses mecanismos de informação têm o suporte da própria Presidência dos EUA. Em fevereiro de 1995, Bill Clinton estabeleceu como prioridade dos serviços de informação (National Security Strategy and Enlargement) "a coleta e a análise de informações relativas ao desenvolvimento econômico"... E reafirmou que "o papel do governo é o de um sócio (sic) do setor privado, agindo como um defensor dos interesses econômicos nacionais". Há um certo debate nos EUA sobre a moralidade e a constitucionalidade de agentes governamentais recolherem informações para o setor privado. Ele se concentra na legalidade dos serviços de informações para realizar tal atividade e sua difusão a empresas privadas. Há, também, o problema da sua moralidade diante das regras comerciais estabelecidas pela OMC, organismo que caminha para a desmoralização graças ao comportamento dos países líderes mundiais. O debate continua. Enquanto isso, o sr. James Woolsey, sucessor do sr. Gates na CIA revelou, candidamente, que "muitos bilhões de dólares de contratos para as empresas americanas foram obtidos com o uso dos dados coletados pelos serviços de informação".
Vai ser divertido ver os economistas neocolonizados mais sofisticados modelarem um sistema com as virtudes da livre competição, na presença de um agente com conhecimento quase infinito e que não é o velho e honesto leiloeiro de Walras...


Antonio Delfim Netto escreve às quartas-feiras nesta coluna.



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