São Paulo, segunda-feira, 11 de outubro de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Anorexia histórica

CRISTOVAM BUARQUE

A lguns países temem adotar medidas que os transformem em nações fortes no cenário mundial. O Brasil é um deles. Durante quatro séculos tememos abolir a escravidão e proclamar a República, em função dos interesses de poucos fazendeiros que dominavam a cena e temiam a falta da mão-de-obra cativa e um presidente escolhido pelo povo. Perdemos a chance de educar os escravos, de incentivar o seu trabalho, e assim tornamo-nos um país anoréxico.
Quando finalmente decidimos absorver a energia de uma massa trabalhadora livre em um regime republicano, fizemo-lo timidamente. Os presidentes passaram a ser eleitos, mas agiam como imperadores escolhidos pela corte; os trabalhadores continuaram sem educação e com ridículos salários, com sindicatos pelegos ou proibidos e partidos diferentes apenas nas siglas. Por 115 anos, mantivemos nossa abolição e nossa República incompletas.
Apesar dos avanços na economia, que transformou um país rural e agrícola em urbano e industrial, o Brasil continuou anoréxico na sua estrutura de nação: com uma vergonhosa concentração de renda, sem educar o povo, com um mercado interno muito menor do que sua população, sem democracia, com crianças fora da escola, uma moeda debilitada e um setor produtivo dependente de protecionismo. Nos últimos dez anos avançamos na consolidação da democracia, da estabilidade monetária, da concorrência internacional.


Lula é um presidente da administração, não o presidente da mudança. E para isso bastaria tão pouco


E pouca coisa mais.
Em 2002 o Brasil deu uma virada e elegeu um presidente vindo das camadas excluídas, que não pagou os pedágios cobrados pela "corte" -diploma, enriquecimento, partido conservador. O novo presidente chega ao segundo ano de governo com um país que alcança pela primeira vez, desde 1930, crescimento econômico com estabilidade monetária e democracia.
Mas os dois anos de governo novo não apontam para a cura dessa anorexia histórica. Os avanços mantêm a mesma tendência do passado, com a consolidação e a reorganização de projetos importados dos últimos 20 anos de democracia. Um avanço tão lento quanto na época da abolição, entre a proibição do tráfico e a Lei Áurea. O presidente Lula precisa romper o ciclo de anorexia histórica e usar as energias de que o país dispõe para fazer um choque social, mudando o rumo de nossa história.
Os dados da última PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, do IBGE) mostram que o Brasil avança lentamente na área social, especialmente na educação, e ainda comemora essas pequenas melhorias. Não há o que comemorar, e sim desculpas a pedir, se o número de crianças trabalhadoras caiu para 1,5 milhão e a taxa de analfabetismo baixou para 13%. Esse é o comportamento de um país de jovens anoréxicos comemorando quando os filhos aceitam algumas colheres de mel.
Lula já entrou para a história por ter dado continuidade às coisas boas feitas no passado, mas perde a chance de mudar a história do Brasil. É um presidente da administração, não o presidente da mudança. E para isso bastaria tão pouco. Na educação, dez medidas transformariam o Brasil e construiriam, em 15 ou 20 anos, uma nação forte:
1) criação de vagas na escola mais próxima de casa para todas as crianças de quatro anos de idade;
2) obrigatoriedade do ensino médio;
3) reforma do programa Bolsa-Família, devolvendo-lhe o conceito de bolsa-escola, com remuneração mínima de um salário mínimo;
4) federalização da educação básica, com a adoção de um piso salarial para todos os professores brasileiros que se submetessem a cursos de formação e a um exame para a obtenção de certificação federal;
5) continuação do Programa Brasil Alfabetizado, com a meta de abolir o analfabetismo em quatro anos;
6) definição clara dos instrumentos para abolir o trabalho e a prostituição infantis em no máximo quatro anos;
7) aprovação de uma lei de responsabilidade educacional, a ser aplicada com o mesmo rigor da Lei de Responsabilidade Fiscal;
8) implantação gradual do horário integral em todas as escolas;
9) reforma de todas as escolas brasileiras e compra de equipamentos modernos;
10) envolvimento da universidade brasileira na formação de professores do ensino básico.
Tudo isso foi iniciado no primeiro ano do governo Lula, mas paralisado ou reduzido. Pelo vício de ver o Brasil pela ótica do crescimento econômico, mantendo a deformação que a PNAD mostra. Por anorexia histórica e medo de usar recursos de que o Brasil dispõe para se fazer realmente forte.
O Brasil precisa perceber a chance que tem nas mãos, com um presidente eleito porque venceu o medo, embora o governo não avance na redefinição dos rumos nacionais. É como se, ao eleger o Lula, o eleitor tivesse avisado que queria mudar, mas nós, no governo, tivéssemos retomado o medo histórico de um país com anorexia.

Cristovam Buarque, 60, doutor em economia, é senador pelo PT-DF. Foi reitor da UnB (1985-89), governador do Distrito Federal (1995-98) e ministro da Educação (2003-04).

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