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Ecos do Muro
OTAVIO FRIAS FILHO
Dez anos depois, a queda do Muro
de Berlim continua a produzir conseqüências que vão muito além do simbolismo festivo que cerca a data. Na
época, a derrubada causou júbilo praticamente universal: caía o mais visível
dos símbolos odiosos de um regime
baseado na violência, no medo, no espezinhamento de direitos elementares.
Mesmo no âmbito do pensamento
de esquerda, a reação foi de otimismo.
Esperava-se que as reformas conduzidas por Gorbatchov e estimuladas pelas insurreições espontâneas que pipocavam em todo o Leste desaguassem numa renovação do socialismo.
As mudanças permitiriam reconciliar
igualdade e liberdade.
Foram poucos os que perceberam,
então, o que hoje parece óbvio, ou seja, que as mudanças não apontavam
em direção a um futuro utópico. Seu
real sentido, oculto sob a névoa da retórica libertária, não era tanto de renovação quanto de restauração de um
sistema -o capitalismo- que o Estado comunista havia "superado".
Conforme o socialismo "real" desmanchava, ficava patente o quanto
havia de enganoso em suas celebradas
conquistas, apoiadas num artificialismo econômico, quando não em pura
mentira. Tudo o que a revista "Seleções" dizia não era só propaganda anticomunista, mas correspondia à cinzenta realidade acobertada pelo Muro.
O entusiasmo da esquerda logo cedeu lugar ao desconforto à medida
que todo o discurso sobre a queda do
Muro era convertido, por seus adversários, em pregação neoliberal. Passados dez anos, o fato é que as forças de
esquerda continuam aturdidas, incapazes, até agora, de organizar alternativas à ordem capitalista triunfante.
Os Estados Unidos se transformaram na Roma contemporânea. O colapso da União Soviética minou a resistência dos países islâmicos -e do
Terceiro Mundo em geral- ao predomínio americano, credenciando a
China como embrião de um novo pólo de poder, que ela deverá ocupar na
dicotomia geopolítica ainda em gestação.
O vácuo deixado pelo bloco socialista, que servia, com todas as suas mazelas, de contrapeso ao modelo ocidental, está na base da derrubada de proteções e garantias que levou à furiosa
liberação de mercados. O que chamamos de globalização é um eufemismo
para designar o processo simbolizado
pela queda do Muro.
Menos espetaculares que os efeitos
geopolíticos ou econômicos, as consequências na esfera cultural nem por isso têm sido menos marcantes. Toda
sociedade repousa sobre o egoísmo
humano, componente mais ou menos
inelástico da nossa condição. Nunca
como agora, porém, esse aspecto foi
considerado tão "natural".
A prevalência absoluta de valores
materiais, o surgimento de um narcisismo aquisitivo e ostentatório, a conquista da cultura pela técnica e de toda
a civilização pelos critérios de mercado -tudo faz parte de uma mesma
cadeia de causalidades, como se disséssemos, parodiando Dostoiévski,
que se não existe socialismo então tudo é permitido.
Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.
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