São Paulo, terça-feira, 12 de fevereiro de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

Solidariedade e vida

ROBERTO DUAILIBI

Em uma de suas crônicas, Rubem Braga imagina uma grande festa na Terra, a última dos homens, para a qual toda a humanidade é convidada e na qual todos vivem aquele momento com a consciência de sua fugacidade. Confraternizam-se santos e pecadores, cristãos e gentios, devotos e ateus.
A vida não se repete e nos conviria desfrutá-la como se fosse uma festa, porque outra chance não nos será dada. Seria bom saudar a existência com a alegria dos sentidos e dizer que todos somos seres privilegiados: temos os olhos de ver o mundo, o ouvido de ouvir a voz do outro. Temos também a razão, que, investigando a natureza, faz dela a grande cúmplice de nossa aventura. Todos esses atributos nos destinam à fraternidade, porque somos essencialmente iguais e a vida é a vitória da solidariedade -ou seja, do altruísmo- sobre o egoísmo.
A grande presença de São Francisco está em sua plena assunção da solidariedade, que é, no fundo, a mensagem única deixada pelo jovem pregador da Palestina. Nenhuma personalidade do Ocidente, depois de Cristo, superou-o. Os doutores da Igreja, Ambrósio, Agostinho, Jerônimo, Isidoro e Tomás de Aquino, explicavam a fé com a razão, enquanto o jovem de Assis explicava-a com o amor. Francisco descobriu, em súbita revelação, a alegria de viver, e procurou distribuí-la aos que viviam na tristeza.
A verdadeira solidariedade é a que tem como fim a igualdade. A igualdade deve significar a distribuição justa das oportunidades e dos recursos mínimos para uma vida decente, de tal forma que cada ser de uma sociedade possa realizar-se em sua singularidade, contribuindo à vida comum. Solidariedade vem de "holos", a palavra grega que significa inteiro, total, e nos chega pelo latim "solidus", duro, sólido, inteiro. Por isso mesmo, ainda que a solidariedade se possa exercer em todos os níveis da sociedade, o seu instrumento mais eficaz é a sociedade organizada em torno de um Estado, ou em torno de uma entidade com uma causa justa.


A grande tarefa solidária do Estado é permitir que a economia gere o maior número possível de empregos


Cabe ao Estado garantir a educação, a saúde e o trabalho a todos os cidadãos. Se o Estado conseguir assegurar esses direitos essenciais, caberá ao esforço de cada um obter os bens materiais e espirituais que o possam distinguir. A grande tarefa solidária do Estado é permitir que a economia gere o maior número possível de empregos e perspectivas de realização.
Na sociedade atual é provavelmente impossível obter a igualdade econômica para todos; mas não é difícil dela se aproximar, mediante o crescimento da classe média. Os países mais desenvolvidos não conseguiram eliminar definitivamente a pobreza, mas a existência de uma classe média majoritária permite a crescente democratização do poder político e o mínimo de justiça na distribuição da renda. A equidade econômica não elimina a necessidade de que sejamos solidários. Os homens não sofrem apenas da carência de bens materiais, que são indispensáveis ao exercício da virtude, conforme a lição do santo Tomás de Aquino, mas necessitam também do afeto, do amor e do usufruto da amizade. Só os egoístas e avaros podem se satisfazer no isolamento.
Não é por acaso que uma boa teologia vê na solidariedade a descoberta de Deus. Esse entendimento explica a aparência humana que as religiões deram aos deuses, aos anjos e aos titãs: é necessário que eles tenham olhos para ver os homens, ouvidos para ouvi-los e braços para ajudá-los. Por solidariedade com os homens, a fim de os salvar, Deus enviou seu filho ao mundo, fazendo-o nascer no meio dos bichos, vivendo em uma terra colonizada, como filho de trabalhador, curando os enfermos, pregando um reino de igualdade e sendo flagelado, coroado de espinhos e crucificado.
Como todas as empresas humanas, a solidariedade é um processo, sucessão de atos em busca do melhor convívio dos seres vivos, e não só dos homens. A solidariedade não é ato gratuito, que nasça da bondade, mas, como ela, se trata de uma necessidade. O homem deve ser bom, porque isso é melhor para ele mesmo e para todos. A solidariedade sempre foi, e continua sendo, um ato da inteligência.
A solidariedade nada tem a ver com a caridade, que pressupõe a superioridade de quem dá em relação a quem recebe; a solidariedade parte do princípio da igualdade entre quem dá e quem recebe e deve ser exercida sem nenhuma esperança de contrapartida.
Nunca foi tão fácil ao mundo o exercício da solidariedade. A tecnologia de produção permite que haja excedentes agrícolas como em nenhuma outra época, mas povos inteiros continuam morrendo de fome. Metade dos brasileiros arrasta-se ainda na penúria e no sofrimento. Por serem assim tão pobres, a sua pobreza se reproduz e se multiplica, geração após geração. Quando as famílias melhoram o seu padrão, diminui-se o número de seus filhos. Não há melhor contenção demográfica do que o bem-estar, nem há melhor instrumento de combate à violência urbana.
Solidariedade, humanismo e cristianismo são expressões sinônimas. As pessoas que os praticam, fazem-no como se estivessem na grande e última festa na Terra, imaginada por Rubem Braga. Anima-as aquela verdade, a de que só temos uma vida e só podemos aproveitá-la no convívio solidário com os outros seres humanos.


Roberto Duailibi, 66, publicitário, sócio-diretor da agência DPZ, é conselheiro do Fundo Social de Solidariedade do Estado de São Paulo.



Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES
Flavia Piovesan: Insegurança pública e crime organizado

Próximo Texto:
Painel do leitor

Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.