São Paulo, sexta-feira, 12 de março de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O terror, os trens e o inumano

DENIS LERRER ROSENFIELD

Madri é uma cidade extremamente aprazível, conhecida por seus museus, cafés, livrarias e por sua segurança. O medo não fazia parte do seu cotidiano. De repente, ele irrompe sob uma forma particularmente aterradora, criando uma extrema instabilidade e mostrando um avesso possível dessa normalidade.
Os números do atentado que abalou essa cidade são impressionantes: pelo menos 192 pessoas assassinadas e mais de 1.400 feridos. O alvo não deixa lugar a dúvidas: as vítimas são civis, que se deslocavam de trem, fazendo, nesse dia, o que sempre fizeram. Esse dia, no entanto, não era mais um dia qualquer. Ele foi o último dia para mais de uma centena de pessoas e um dia único para todos os que procuram pensar o futuro do homem numa sociedade democrática. Madri não mais voltará a ser a mesma cidade, pois em sua memória ficará gravada a desmedida da barbárie.


Madri não mais voltará a ser a mesma cidade, pois em sua memória ficará gravada a desmedida da barbárie


Não se trata de uma coincidência que vagões de trem e estações tenham sido os lugares escolhidos para a perpetuação dos atentados. Eram também vagões que percorriam a Alemanha em plena guerra para conduzir judeus aos campos de extermínio. Foram trens que cruzaram as estepes russas para levar qualquer opositor ao regime comunista ao dia final, abuptamente decidido. São trens novamente que aparecem como símbolos da violência terrorista. Um meio de locomoção tão simples e cômodo pode-se tornar a cena do inumano.
O caráter violentamente abrangente de tais atos, que procura não poupar nenhuma forma de humanidade, revela-se igualmente no tipo de alvo civil escolhido, pois duas linhas atingidas serviam a bairros operários da periferia madrilenha. O simbolismo é aqui revelador, pois mostra que os autores desses atentados estão desprovidos de qualquer veleidade social, seu objetivo consistindo única e exclusivamente na imposição de seu poder, de sua dominação e de seu credo.
Não faltarão, certamente, os que procurarão justificar tais atos em nome de uma pretensa causa social ou política. Eles são, no entanto, nada mais do que um outro símbolo, o da decadência de ideologias que não sabem mais a que se aferrar.
Doadores de sangue acorreram aos hospitais de Madri. O seu afluxo foi tão grande que não havia mais como armazenar o sangue recolhido. Foi necessário que um alerta fosse dado para que as pessoas não mais se dirigissem aos postos de recolhimento de sangue. Um tal gesto de doação é significativo de um tipo de solidariedade que mostra que a humanidade, mesmo em seus momentos mais duros e penosos, não deve se desesperar, pois há os que sabem dizer não ao terror.
O planejamento meticuloso desses atentados exibe o funcionamento de uma vontade maligna, voltada exclusivamente para a consecução do mal. Bombas que explodem com intervalos de quatro e cinco minutos mostram o tempo infinito em que a humanidade se estiola. Em espaços de tempo tão curtos, vemos como outros bípedes falantes procuram impor a sua idéia do que "deve ser" a subjugação dos humanos. Na implosão do cotidiano, aparece o caráter aterrador que os "humanos" podem adotar.
A autoria material desses atos não foi ainda estabelecida. Alguns indicam o ETA, outros a organização Al-Qaeda, ambos tendo um longo histórico de atentados. As suas "folhas corridas" discorrem amplamente sobre os seus objetivos. Apesar de a autoria material ser importante do ponto de vista policial, jurídico e militar, ela aponta, de uma forma geral, para um projeto de tipo totalitário, assentado no desprezo pela racionalidade. Assim sendo, o governo espanhol não pode, de maneira nenhuma, recuar no combate a essa espécie maligna de ação, pois, se o fizer, contribuirá, paradoxalmente, para a sua ampliação. Os que se curvam diante do medo potencializam-no.
O terror não se situa na esfera política. Diante dele, não pode haver negociação, pois essa é uma forma da política, da interlocução e, logo, de uma certa forma de reconhecimento. Indivíduos ou grupos que negociam se reconhecem como seres racionais que compartem, por ínfimos que sejam, determinados valores e princípios. Ora, em face de atos baseados na idéia de destruição das formas mais elevadas de humanidade, não pode haver nenhum tipo de compromisso. Se os autores dessas ações partem da negação mesma da possibilidade da interlocução racional, eles não podem -nem devem- ser tratados como iguais.
Se a condenação desses atos não for incondicional, se condicionantes forem introduzidos, abre-se uma perigosa via na qual os valores da humanidade podem irremediavelmente se perder. É esse abismo o propósito perseguido pelo terror.

Denis Lerrer Rosenfield, 53, doutor pela Universidade de Paris 1, é professor titular de filosofia da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e editor da revista "Filosofia Política". É autor de "Política e Liberdade em Hegel" (Ática, 1995), entre outros livros.


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