São Paulo, terça-feira, 12 de abril de 2005

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Um marco na saúde pública

MOACYR SCLIAR

Este 12 de abril representa um marco na história da saúde pública e na história da medicina em geral: há exatamente 50 anos, em 1955, um médico norte-americano, o dr. Jonas Salk, anunciava que, depois de um gigantesco estudo envolvendo quase 2 milhões de crianças nos EUA, concluíra-se que uma vacina contra a poliomielite revelara-se "safe, effective and potent" -segura, eficaz e potente. A notícia foi recebida com enorme júbilo, sobretudo num país que desde o começo do século 20 vinha enfrentando gigantescas epidemias da doença -uma das vítimas fora ninguém menos que o presidente Franklin Roosevelt, que muitas vezes era visto em cadeira de rodas.


Sabin brigou com denodo e contou com um auxílio inesperado: a União Soviética resolveu testar seu imunizante


Era uma ameaça crescente. O vírus, que é eliminado pelas fezes e entra no organismo por via oral, é muito antigo, mas, no passado, as crianças infectavam-se precocemente e precocemente desenvolviam imunidade (ou morriam). A melhora nas condições de higiene e saneamento, sobretudo nas metrópoles, diminuiu essa possibilidade. A infecção agora era súbita e muito mais perigosa. Podia resultar em paralisia de um membro inferior, o caso de Roosevelt, ou na chamada pólio bulbar, que comprometia os centros nervosos da respiração e condenava pessoas a passar o resto da vida no pulmão de aço.
A epidemia de 1952 nos EUA foi particularmente violenta: 60 mil casos com 3.000 óbitos. Epidemia semelhante, ainda que de menores proporções, ocorreu no Brasil em 1953. Os serviços de saúde não tinham como enfrentar esse desafio, recorrendo até a medidas absurdas: todas as casas da Vila Ransard, em São Paulo, foram dedetizadas, o que, no caso da pólio, é absolutamente inócuo.
Nos EUA, recursos foram coletados mediante uma gigantesca campanha popular, a Marcha dos "Dimes" (moeda de dez centavos), e investidos nas instituições de pesquisa com um objetivo prioritário: obter uma vacina. O que já era possível. Em 1948, John Enders e colaboradores já haviam cultivado o vírus (um sucesso que valeu ao cientista o Nobel de medicina).
É então que entra em cena Jonas Salk. Nascido em Nova York, de uma humilde família de emigrantes judeus russos, Salk estudou medicina e tornou-se pesquisador na Universidade de Pittsburgh, associada à Fundação para a Paralisia Infantil. Era um homem de difícil trato, mas determinado, como costumam ser os filhos de imigrantes, e lutou com denodo até que a vacina, preparada com vírus mortos, se tornasse realidade. Produzida por um laboratório canadense, foi aplicada em massa; mas o júbilo inicial logo deu lugar a alarme, quando outra vacina, esta de fabricação americana, resultou em mais de 200 casos de pólio. Um incidente sombrio, mas explicável: os vírus não tinham sido devidamente inativados. De qualquer modo, a vacina Salk tinha um inconveniente operacional: era injetável, portanto não muito adequada para programas de imunização em massa.
Entra em cena então um segundo personagem, Albert Sabin. Como Salk, era filho de imigrantes judeus da Europa Oriental; como ele, era persistente. Além de seu grupo, dois outros, os de Hilary Koprowski (que morou no Brasil algum tempo) e Howard Cox, estavam na corrida da vacina oral. Mas Sabin brigou com denodo e contou com um auxílio inesperado: a União Soviética resolveu testar seu imunizante. Países comunistas eram muito adequados para esses experimentos de massa, e logo ficou confirmado que a vacina oral funcionava (Sabin, a quem conheci pessoalmente e que era homem irascível, ficava furioso quando se mencionava o lado "comunista" de sua vacina).
Como se pode imaginar, Salk, cuja relação com Sabin era tensa, ficou mortificado, mesmo porque continuava acreditando na vacina inativada. E tinha um argumento: o imunizante oral podia ser de mais fácil aplicação, mas é preparado com vírus vivos. Em uma de cada 2,5 milhões de pessoas imunizadas pode ocorrer a doença. De qualquer modo a vacina oral foi a escolhida pela OMS quando, em 1988, estabeleceu como objetivo a erradicação da doença.
Em nosso país a campanha foi grandemente favorecida pela estratégia dos dias nacionais de vacinação, lançada pelo ministro Waldyr Arcoverde em 1979. Sabin, que, casado com uma brasileira, residia aqui, foi convidado a assessorar o ministério. Discordando das informações do órgão sobre poliomielite, propôs uma pesquisa sobre prevalência de seqüelas em escolares de todo o país. Proposta que foi recusada: os técnicos argumentaram que o momento era de vacinar, não de pesquisar. Sabin terminou brigando com o ministério, numa polêmica que à época deu muita mídia.
O certo é que, desde 1988, o número de países em que a pólio existia caiu de 125 para seis. No Brasil, o último caso ocorreu em 1989. Dá para celebrar? Não, ainda não dá. Restrições a vacinas, mesmo infundadas (a tríplice viral produziria autismo; a vacina antigripal deixaria pessoas impotentes), emergem da forma mais inesperada. Na Nigéria surgiram boatos de que o imunizante estaria contaminado com o vírus da Aids. O boicote daí resultante espalhou-se a outros 14 países africanos, fazendo com que a pólio neles reaparecesse. Ou seja, não dá para parar de vacinar.
Dificuldades à parte, o certo é que a vacina representou uma grande vitória contra a doença. Uma vitória da qual podem se orgulhar a saúde pública mundial e a brasileira, em particular.

Moacyr Scliar, médico e escritor,
é colunista do caderno Cotidiano.



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