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São Paulo, segunda-feira, 12 de maio de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A reforma da Previdência

GERALDO BIASOTO JR.


O direito adquirido, tão defendido pelo presidente nos palanques, foi simplesmente esquecido
A reforma da Previdência já está em discussão no Congresso. Mas é uma grande decepção para todos aqueles que acharam que o tema seria enfrentado com seriedade e bom senso. A proposta de emenda constitucional não é só injusta com o servidor, mas envolve fortes desequilíbrios fiscais em todo o sistema previdenciário público, abdica da coordenação nacional das várias instituições previdenciárias públicas e abre espaço para enormes pendências judiciais. É o que demonstraremos.
Os atuais aposentados não serão penalizados apenas com a contribuição do inativo, pois seus beneficiários terão redução de 30% em suas pensões. O mesmo vale para aqueles que já completaram a construção de seu direito à aposentadoria, embora não a tenham requisitado. Portanto o direito adquirido, tão defendido pelo presidente nos palanques, foi simplesmente esquecido.
Aos atuais servidores foi reservado um coquetel de maldades que faria corar de vergonha qualquer ditador latino-americano. Em vez de a aposentadoria ser equivalente ao valor dos proventos do final da carreira, ela será a média de todas as contribuições realizadas durante a vida laboral. Ou seja, os atuais servidores vão obter aposentadorias equivalentes a pouco mais da metade da remuneração de final de carreira, e seus felizardos pensionistas deverão saborear algo como 35% da última remuneração do chefe da família.
Mas, se o benefício será fortemente reduzido, por que manter a contribuição em 11% do salário integral? Se a aposentadoria do INSS é calculada sobre os oito últimos anos de contribuição, que tipo de isonomia legitima que para o servidor público sejam contabilizadas todas as contribuições?
A leitura atenta pode dar algumas pistas. Toda a ânsia em revogar o atual dispositivo constitucional que exige a adesão expressa e individual do servidor ao fundo de previdência complementar denuncia a intenção de fazer uma transição quase compulsória ao novo sistema. Ou seja, o governo promove a deterioração do sistema de Previdência para os atuais servidores e retira as garantias de permanência que existem no atual texto constitucional.
Ao mesmo tempo, para fugir à discussão de um projeto de lei do governo FHC (PL 9), a proposta de emenda desmantela qualquer condição de regulação dos fundos de pensão da União, dos Estados e dos municípios. Ao abdicar da lei complementar e permitir que leis ordinárias estaduais e municipais regulem a matéria, sem parâmetros nacionais, estará aberta a temporada de absurdos. Qual será o custo fiscal dessa desastrada desregulamentação?
A ausência de regras de transição é tão gritante que não se prevê que os tesouros Federal, estaduais e municipais transferirão os recursos já poupados pelos servidores aos novos fundos complementares. Da mesma forma, não se prevê nenhum repasse de recursos relativos à contribuição patronal que seria devida. Vale dizer, os servidores são entregues à sua própria sorte.
Nem do ponto vista fiscal a emenda é defensável. Sua promulgação, na forma atual, gerará justamente o contrário da percepção de sustentabilidade dos sistemas de previdência pública que tanto se deseja. Primeiro, pela inevitável multiplicação de demandas ao Poder Judiciário com respeito ao repasse das contribuições já realizadas. Segundo, porque, na ausência de norma geral sobre obrigações dos fundos quanto a benefícios e contribuições, a própria Justiça perderá parâmetros para julgamento. Terceiro, porque a falta de delineamentos quanto ao tipo e forma de aplicação dos recursos a serem acumulados cria grandes dúvidas quanto à capitalização adequada dos recursos, para dizer o mínimo. Infelizmente, a emenda não se preocupa em definir a gestão do fundo de capitalização e o destino dos recursos.
Mas não são apenas as injustiças e a insegurança jurídica e fiscal que devem nos colocar em alerta. A reforma proposta espelha a total incompreensão da questão da previdência pública como elemento crucial da questão do Estado.
A falta de rumo que a proposta revela deixa transparecer a ausência de uma concepção de Estado e de máquina pública nos escalões superiores do novo governo. Conceitos como proventos da inatividade e aposentadoria integral só têm sentido se vinculados ao Estado e à sua institucionalidade. Juízes, promotores, fiscais tributários, gestores públicos, diplomatas e militares têm o direito à aposentadoria integral, justamente para que a sociedade possa deles cobrar dedicação total à máquina pública. Porém, em vez de reconstruir o Estado e consolidar a máquina pública e suas carreiras, o governo opta pelo desmonte.
A reforma proposta é extremamente perversa para o Estado, porque é vista apenas como uma forma de reduzir despesas, coisa que nem ocorrerá no longo prazo. Para atingir o seu fim, o governo petista rasga sua história, tripudia das promessas que o elegeram. Pratica a mais odiosa injustiça contra os servidores, desmonta as carreiras de Estado e joga a política de recursos humanos dos três níveis de governo num clima de incerteza sem precedentes. Resta-nos esperar que a sociedade possa discutir a reforma e que o presidente Lula ainda não tenha consciência do que seus ministros mandaram ao Congresso.


Geraldo Biasoto Júnior, 41, é professor do Instituto de Economia da Unicamp. Foi coordenador de política fiscal do Ministério da Fazenda e secretário de Investimentos em Saúde do Ministério da Saúde (governo Fernando Henrique).




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