São Paulo, sexta-feira, 12 de maio de 2006

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O gás e as lições de uma crise

GERMANO RIGOTTO

A recente crise envolvendo o governo brasileiro, a Petrobras e o governo boliviano fornece boa oportunidade para analisarmos a política externa brasileira. É importante ressaltar que a nossa diplomacia sempre desfrutou de elevado prestígio internacional.
Tradicionalmente, as posições brasileiras fundam-se em elevados princípios, buscando a harmonia entre as nações, a construção da paz, o respeito às soberanias, a justiça e a conveniente salvaguarda dos nossos interesses. No decorrer do governo Lula, contudo, tornou-se visível que, ao profissionalismo do Itamaraty, se agregava a influência do presidente no sentido de construir uma estratégia geopolítica nem sempre alinhada aos efetivos interesses da economia nacional. Eram dois os fatores que a determinavam.


Ideologias ajudam a compreender certas coisas, mas podem ser prejudiciais na agenda diplomática


De um lado, o desejo presidencial de assumir posição de liderança entre os países do chamado Terceiro Mundo. Isso era nítido no desenho de seus roteiros internacionais, no conteúdo de seus pronunciamentos no exterior e em condutas como os sucessivos perdões de dívidas de outras nações para com o Brasil. Tal diretriz geopolítica tinha, também, uma componente latino-americana. O governo brasileiro pretendeu exercer uma função catalisadora dentro desse bloco, que hoje se desfaz em diversos acordos bilaterais e trilaterais dos quais o Brasil não participa. É notório que lideranças como a que nosso governo pretendeu exercer não são aceitas nem se justificam perante os vizinhos continentais.
De outro, o anseio por conquistar uma cadeira no Conselho de Segurança da ONU. Para alcançar esse objetivo, o Brasil lançou-se a angariar simpatias nem sempre condizentes com nossa conveniência comercial. Foi o caso, por exemplo, do reconhecimento da China como país de economia de mercado, malgrado o papel muitas vezes deletério das políticas chinesas nos preços internacionais e sua influência negativa sobre diversos setores da nossa economia.
Ideologias ajudam a compreender certas coisas, mas podem ser prejudiciais numa agenda diplomática. O atual presidente boliviano, desde que emergiu como liderança política em seu país, deixou muito clara sua postura em relação aos recursos naturais, à sua exploração e à sua comercialização. Mesmo tendo anunciado que agiria contra o interesse brasileiro, contou com integral simpatia e apoio do nosso governo, que não pode alegar surpresa ou estranheza. Era a crônica de uma expropriação anunciada.
A resposta brasileira foi titubeante. De um lado, a Petrobras reagiu com o anúncio da suspensão de investimentos. De outro, nosso presidente, ao cabo de uma reunião em que ficou muito claro o protagonismo do líder venezuelano, assegurou a manutenção desses programas e ainda transferiu à Petrobras os ônus de quaisquer elevações nos custos de fornecimento de gás pela Bolívia.
Ora, a Petrobras investiu mais de US$ 1 bilhão naquele país. Responde diretamente por uma quinta parte do PIB boliviano. Criou, no Brasil, um mercado consumidor para 85% daquele gás (riqueza natural que sem nosso mercado nada valeria) e gera milhares de empregos bem remunerados. Mesmo assim, o governo boliviano não vê a Petrobras com bons olhos. Ao contrário, percebe-se como vítima de ações "imperialistas". No lado brasileiro, as afinidades políticas entre o nosso presidente e o mandatário da Bolívia conspiraram contra a expropriada Petrobras e contra o interesse nacional em matéria tão estratégica quanto é a energia. Sublinhe-se: o interesse brasileiro não colide com a posse boliviana de seus recursos naturais, mas bate de frente com o rompimento do contrato e com a expropriação a que foi submetida a Petrobras.
Para que se tenha idéia do vulto do problema criado, vale lembrar que cá, no extremo do gasoduto Bolívia-Brasil, o Rio Grande do Sul, através da estatal Sulgás, investiu mais de R$ 140 milhões e criou um mercado veicular, industrial e de co-geração que cresceu quase cinco vezes nos últimos três anos. Todos esses investimentos públicos e privados vivem momento de inquietação. Repudiamos retaliações e quaisquer atos de violência, mas, como brasileiros, esperamos que a sensatez volte a reinar, que a Petrobras recorra à Corte Arbitral de Nova York independentemente dos titubeios oficiais e receba as indenizações devidas, que se cumpram os contratos (inclusive quanto aos preços), que nosso governo se ocupe menos de geopolítica e mais de nossos interesses comerciais e que o Brasil busque, com urgência, fontes de suprimentos menos sujeitas aos solavancos políticos a que restamos submetidos.

Germano Rigotto, 56, é governador do Estado do Rio Grande do Sul pelo PMDB. Foi deputado federal pelo PMDB por três mandatos.


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