São Paulo, terça, 12 de maio de 1998

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Descrença na política

ROBERTO MANGABEIRA UNGER

Dedico este espaço semanal a proposta de alternativa para o Brasil. É, como disse Samuel Johnson sobre o segundo casamento, o triunfo da esperança sobre a experiência: mesmo os politizados preferem reclamar a falta de alternativas a discutir as alternativas apresentadas. Paro de vez em quando para refletir sobre as emoções que abram ou bloqueiem o caminho.
Pesquisas recentes confirmam que grande parte dos brasileiros deixaria de votar se fosse facultativo o voto. O desejo de cair fora é mais forte entre os pobres. É forte, porém, em todas as faixas do eleitorado. No Brasil, como na maioria dos países contemporâneos, o destino da política é decidido hoje por maioria de pessoas que não acredita em política. Não é só que desacredite nos políticos dos seus países, já que o fenômeno corre mundo. E não é só que desacredite no Estado, já que a mesma descrença recai sobre a política liberal ou neoliberal.
Há duas hipóteses principais para explicar a difusão da descrença. A primeira explicação é que ela reflete a impotência da política. Só catástrofes econômicas ou militares interrompem a rotina da política como pequena barganha entre minorias organizadas. Essa forma de vida pública encontra seu limite quando é preciso mexer na organização da sociedade, não apenas repartir custos e benefícios.
A segunda hipótese é que as instituições podem imprimir à política viés que lhe esvazie ou reforce o potencial transformador, inspirando ou vencendo a descrença. As instituições políticas que copiamos das democracias ricas do Atlântico Norte favorecem a desmobilização da cidadania e a perpetuação dos impasses sobre propostas mudancistas. Reformando tais instituições, ganharíamos poder para resistir ao destino que elas nos impõem.
Há muito de verdade nessa segunda hipótese, muito que deve interessar, apaixonadamente, a nós brasileiros. Os que resistimos à situação precisamos ganhar o poder para mudar as instituições e reinventar a democracia. Mas não é a verdade toda. Há algo que toca os segredos do coração.
A descrença na política é também desesperança em nós mesmos, como indivíduos e como povo. É como se um homem se agachasse e olhando para cima dissesse: antes agachado do que enganado. É como se quisesse ver na humilhação de sua vontade a afirmação de sua inteligência, de sua capacidade de ver as coisas como são.
Há sentimento terrível no Brasil que temos de mudar tanto quanto as injustiças que praticamos e as instituições que importamos. É o culto da esperteza, cristalizado na imagem do malandro charmoso e sobrevivente. A esperteza aconselha a descrença não só na política, mas também em tudo que, não sendo vantagem imediata e tangível, prometa engrandecer-nos.
Para o povo, o culto da esperteza é estratégia de sobrevivência, útil no começo e paralisante depois. Traduzido para a consciência das classes superiores, vira o distanciamento irônico do desiludido: defensivo para a classe média e aproveitador para a alta burguesia. Além de todos os seus efeitos sociais, mumifica o indivíduo. O homem irônico e distante não se deixa sacudir. Já morreu em vida.
A descrença na política, avalizada pelo culto da esperteza, exprime desrespeito da pessoa para consigo mesma. Não pode, porém, ser combatida por exemplos de respeitabilidade. Só pode ser combatida por exemplos de esperança, dados na política do país e nas vidas de alguns de seus cidadãos.


Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.
E-mail: unger@law.harvard.edu



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