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Descrença na política
ROBERTO MANGABEIRA UNGER
Dedico este espaço semanal a proposta de alternativa para o Brasil. É,
como disse Samuel Johnson sobre o
segundo casamento, o triunfo da esperança sobre a experiência: mesmo
os politizados preferem reclamar a
falta de alternativas a discutir as alternativas apresentadas. Paro de vez em
quando para refletir sobre as emoções
que abram ou bloqueiem o caminho.
Pesquisas recentes confirmam que
grande parte dos brasileiros deixaria
de votar se fosse facultativo o voto. O
desejo de cair fora é mais forte entre
os pobres. É forte, porém, em todas as
faixas do eleitorado. No Brasil, como
na maioria dos países contemporâneos, o destino da política é decidido
hoje por maioria de pessoas que não
acredita em política. Não é só que desacredite nos políticos dos seus países,
já que o fenômeno corre mundo. E
não é só que desacredite no Estado, já
que a mesma descrença recai sobre a
política liberal ou neoliberal.
Há duas hipóteses principais para
explicar a difusão da descrença. A primeira explicação é que ela reflete a
impotência da política. Só catástrofes
econômicas ou militares interrompem
a rotina da política como pequena
barganha entre minorias organizadas.
Essa forma de vida pública encontra
seu limite quando é preciso mexer na
organização da sociedade, não apenas
repartir custos e benefícios.
A segunda hipótese é que as instituições podem imprimir à política viés
que lhe esvazie ou reforce o potencial
transformador, inspirando ou vencendo a descrença. As instituições políticas que copiamos das democracias
ricas do Atlântico Norte favorecem a
desmobilização da cidadania e a perpetuação dos impasses sobre propostas mudancistas. Reformando tais instituições, ganharíamos poder para resistir ao destino que elas nos impõem.
Há muito de verdade nessa segunda
hipótese, muito que deve interessar,
apaixonadamente, a nós brasileiros.
Os que resistimos à situação precisamos ganhar o poder para mudar as
instituições e reinventar a democracia. Mas não é a verdade toda. Há algo
que toca os segredos do coração.
A descrença na política é também
desesperança em nós mesmos, como
indivíduos e como povo. É como se
um homem se agachasse e olhando
para cima dissesse: antes agachado do
que enganado. É como se quisesse ver
na humilhação de sua vontade a afirmação de sua inteligência, de sua capacidade de ver as coisas como são.
Há sentimento terrível no Brasil que
temos de mudar tanto quanto as injustiças que praticamos e as instituições que importamos. É o culto da esperteza, cristalizado na imagem do
malandro charmoso e sobrevivente. A
esperteza aconselha a descrença não
só na política, mas também em tudo
que, não sendo vantagem imediata e
tangível, prometa engrandecer-nos.
Para o povo, o culto da esperteza é
estratégia de sobrevivência, útil no começo e paralisante depois. Traduzido
para a consciência das classes superiores, vira o distanciamento irônico do
desiludido: defensivo para a classe
média e aproveitador para a alta burguesia. Além de todos os seus efeitos
sociais, mumifica o indivíduo. O homem irônico e distante não se deixa
sacudir. Já morreu em vida.
A descrença na política, avalizada
pelo culto da esperteza, exprime desrespeito da pessoa para consigo mesma. Não pode, porém, ser combatida
por exemplos de respeitabilidade. Só
pode ser combatida por exemplos de
esperança, dados na política do país e
nas vidas de alguns de seus cidadãos.
Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras
nesta coluna.
E-mail: unger@law.harvard.edu
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