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TENDÊNCIAS/DEBATES
O homem precisa da energia nuclear?
NÃO
Apenas parte da solução
JOSÉ GOLDEMBERG
A defesa que James Lovelock, o
criador da controvertida idéia de
Gaia, faz da energia nuclear como a "tábua da salvação" (Gaia precisa da energia nuclear", Ciência, pág. A16, 8/6) que
evitará o aquecimento da terra é equivocada de três pontos de vista: a opção
nuclear não é a única, não é a melhor e,
mesmo se adotada integralmente, não
vai resolver o problema.
Vejamos por que, começando pela última. Energia nuclear serve para produzir eletricidade, e 17% da eletricidade
consumida hoje no mundo vem de reatores nucleares (principalmente nos Estados Unidos, Rússia, França e Japão),
sendo que cerca de 400 reatores de
grande porte estão em funcionamento.
A eletricidade produzida em usinas hidroelétricas, no mundo todo, é também
aproximadamente de 17%. O restante é
gerado pela queima de carvão, gás e petróleo.
Sucede que, além de eletricidade, a sociedade moderna consome uma enorme quantidade de combustíveis (carvão, gás, petróleo) na indústria, transporte e outros setores. Reatores nucleares que produzem eletricidade não conseguirão substituir esses combustíveis.
Apenas um terço da energia consumida
no mundo é gerada na forma de eletricidade. Portanto seria preciso que toda a
eletricidade mundial viesse de reatores
nucleares -economizando carvão, gás
e petróleo- para diminuir as emissões
de carbono, contribuindo para reduzir
o efeito estufa.
Essa alternativa teria de ser implementada nos próximos 20 anos, a fim de
que, efetivamente, se evitasse uma catástrofe climática em meados do século.
Isso significa concluir um ou dois reatores nucleares por semana. Não existe
nenhuma possibilidade técnica de que
isso ocorra. Desde 1985 nenhuma construção de novo reator foi iniciada nos
Estados Unidos, que nem necessitam de
mais eletricidade. Algo semelhante
ocorre na França e no Japão.
O consumo de eletricidade está crescendo nos países em desenvolvimento,
e inúmeros deles são pequenos demais
para acomodar na sua rede elétrica
-quando ela existe- um grande reator nuclear. Energia nuclear não é a resposta para os problemas desses países
que dependem da importação de petróleo e gás. O que originou o grandioso
programa nuclear brasileiro na década
de 70 foi justamente o diagnóstico equivocado de que reatores nucleares reduziriam a importação de petróleo e aumentariam a independência energética
do país.
Lovelock está equivocado quando
desqualifica as outras soluções para os
problemas energéticos mundiais. Fontes renováveis de energia não são nenhum sonho de acadêmicos, como
mostra o grande programa do álcool do
Brasil, pelo qual metade da gasolina que
seria usada no país se o programa não
existisse foi substituída por um combustível líquido de alta qualidade, renovável e não-poluente. Há outras opções
para o uso de biomassa em desenvolvimento no país. Em outros países, como
a Alemanha e a Dinamarca, a energia
eólica está fazendo grandes progressos e
já responde por mais de 20% da eletricidade em uso.
Mesmo usando combustíveis fósseis,
como o carvão, que é abundante no
mundo, há opções novas para capturar
o carbono emitido e reinjetá-lo em cavernas, poços de petróleo exauridos ou
no próprio oceano. A produção de hidrogênio também é outra opção freqüentemente exagerada, mas que abre
caminho para as células de combustível
que produzem de fato poluição zero.
Finalmente existe a opção do uso mais
racional da energia, que é real, sobretudo nos países industrializados que desperdiçam energia de forma extravagante. Foi essa racionalização que salvou os
Estados Unidos da crise do petróleo da
década de 70 e o Brasil do apagão, na
crise de 2002, quando a falta de chuva
esvaziou os reservatórios das hidroelétricas. Enormes progressos estão sendo
feitos nessa área.
Lovelock, que teve idéias criativas ao
comparar a Terra a um sistema que possui algumas das características dos organismos vivos (hipótese Gaia), claramente não tem um conhecimento profundo da área de energia e erra ao defender a energia nuclear como a solução
para o efeito estufa. Ela pode até desempenhar um papel complementar nessa
tarefa, mas nunca um papel central.
José Goldemberg, 76, professor do Instituto de
Eletrotécnica e Energia da USP, é o secretário do
Meio Ambiente do Estado de São Paulo. Foi reitor da USP (1986-89), secretário da Ciência e Tecnologia da Presidência da República e ministro
da Educação (governo Collor).
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