São Paulo, sábado, 12 de junho de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O homem precisa da energia nuclear?

NÃO

Apenas parte da solução

JOSÉ GOLDEMBERG

A defesa que James Lovelock, o criador da controvertida idéia de Gaia, faz da energia nuclear como a "tábua da salvação" (Gaia precisa da energia nuclear", Ciência, pág. A16, 8/6) que evitará o aquecimento da terra é equivocada de três pontos de vista: a opção nuclear não é a única, não é a melhor e, mesmo se adotada integralmente, não vai resolver o problema.
Vejamos por que, começando pela última. Energia nuclear serve para produzir eletricidade, e 17% da eletricidade consumida hoje no mundo vem de reatores nucleares (principalmente nos Estados Unidos, Rússia, França e Japão), sendo que cerca de 400 reatores de grande porte estão em funcionamento. A eletricidade produzida em usinas hidroelétricas, no mundo todo, é também aproximadamente de 17%. O restante é gerado pela queima de carvão, gás e petróleo.
Sucede que, além de eletricidade, a sociedade moderna consome uma enorme quantidade de combustíveis (carvão, gás, petróleo) na indústria, transporte e outros setores. Reatores nucleares que produzem eletricidade não conseguirão substituir esses combustíveis. Apenas um terço da energia consumida no mundo é gerada na forma de eletricidade. Portanto seria preciso que toda a eletricidade mundial viesse de reatores nucleares -economizando carvão, gás e petróleo- para diminuir as emissões de carbono, contribuindo para reduzir o efeito estufa.
Essa alternativa teria de ser implementada nos próximos 20 anos, a fim de que, efetivamente, se evitasse uma catástrofe climática em meados do século. Isso significa concluir um ou dois reatores nucleares por semana. Não existe nenhuma possibilidade técnica de que isso ocorra. Desde 1985 nenhuma construção de novo reator foi iniciada nos Estados Unidos, que nem necessitam de mais eletricidade. Algo semelhante ocorre na França e no Japão.
O consumo de eletricidade está crescendo nos países em desenvolvimento, e inúmeros deles são pequenos demais para acomodar na sua rede elétrica -quando ela existe- um grande reator nuclear. Energia nuclear não é a resposta para os problemas desses países que dependem da importação de petróleo e gás. O que originou o grandioso programa nuclear brasileiro na década de 70 foi justamente o diagnóstico equivocado de que reatores nucleares reduziriam a importação de petróleo e aumentariam a independência energética do país.
Lovelock está equivocado quando desqualifica as outras soluções para os problemas energéticos mundiais. Fontes renováveis de energia não são nenhum sonho de acadêmicos, como mostra o grande programa do álcool do Brasil, pelo qual metade da gasolina que seria usada no país se o programa não existisse foi substituída por um combustível líquido de alta qualidade, renovável e não-poluente. Há outras opções para o uso de biomassa em desenvolvimento no país. Em outros países, como a Alemanha e a Dinamarca, a energia eólica está fazendo grandes progressos e já responde por mais de 20% da eletricidade em uso.
Mesmo usando combustíveis fósseis, como o carvão, que é abundante no mundo, há opções novas para capturar o carbono emitido e reinjetá-lo em cavernas, poços de petróleo exauridos ou no próprio oceano. A produção de hidrogênio também é outra opção freqüentemente exagerada, mas que abre caminho para as células de combustível que produzem de fato poluição zero.
Finalmente existe a opção do uso mais racional da energia, que é real, sobretudo nos países industrializados que desperdiçam energia de forma extravagante. Foi essa racionalização que salvou os Estados Unidos da crise do petróleo da década de 70 e o Brasil do apagão, na crise de 2002, quando a falta de chuva esvaziou os reservatórios das hidroelétricas. Enormes progressos estão sendo feitos nessa área.
Lovelock, que teve idéias criativas ao comparar a Terra a um sistema que possui algumas das características dos organismos vivos (hipótese Gaia), claramente não tem um conhecimento profundo da área de energia e erra ao defender a energia nuclear como a solução para o efeito estufa. Ela pode até desempenhar um papel complementar nessa tarefa, mas nunca um papel central.


José Goldemberg, 76, professor do Instituto de Eletrotécnica e Energia da USP, é o secretário do Meio Ambiente do Estado de São Paulo. Foi reitor da USP (1986-89), secretário da Ciência e Tecnologia da Presidência da República e ministro da Educação (governo Collor).


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