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TENDÊNCIAS/DEBATES
O MST é uma ameaça à democracia?
NÃO
A doce paz dos campos
PAULO SÉRGIO PINHEIRO
Quem ouve a zoeira em torno da
audiência do presidente da República com o MST fica com a impressão
de que reina nos campos uma paz infinita. Nada mais enganador. Faz tempo
predomina em alguns Estados do Norte, Nordeste e Centro-Oeste guerra imposta por fazendeiros, seus jagunços ou
empresas de segurança, armados até os
dentes, muita vez em conluio com os
aparelhos estatais. Atribuir toda a responsabilidade pela violência no campo
aos sem-terra é jogo de cena.
É evidente que, no Estado democrático, o monopólio da violência física no
Estado exige que todos os particulares
se desarmem -não só os sem-terra, fazendeiros e jagunços também. Mas deixemos de patinar nessa baboseira da
falsa indignação da grande lavoura com
a violência que ela gostosamente alimenta. Está na hora de desvendar a pesada rede de interesses que une fazendeiros à chamada bancada ruralista,
com as polícias Civil e Militar nos Estados, a alguns juízes locais, sem falar das
prebendas que colam recorrentemente
os apoios de bancadas estaduais ao governo federal. Essa poderosa rede faz
com que toda operação de desarmamento no campo desde 1985 comece
com pirotecnia e acabe envergonhada
qual bombinha de são João.
Essa dificuldade do desarmamento
nos campos corresponde a igual incapacidade do Estado democrático de coibir
a circulação de armas de fogo. O Brasil
tem a segunda taxa de homicídio das
Américas, por volta de 24 homicídios
por 100 mil habitantes ao ano, em esmagadora maioria cometidos com armas
de fogo. A proibição de sua comercialização é providência urgente. A principal responsabilidade por essa carnificina e pelas vítimas continuará a caber
aos parlamentares se não legislarem logo a respeito.
O armamento é apenas o aspecto mais
visível do conflito. A guerra no campo é
alimentada pelo "Não-Estado de Direito" engendrado pelo mau funcionamento do Poder Judiciário. A Justiça,
extremamente ágil em conceder liminares de integração de posse e determinar
despejos no caso de ocupações, mostra-se extremamente lenta quando se trata
de julgar e punir os assassinatos e outras
formas de violência contra os trabalhadores rurais. Há enorme dificuldade para identificar mandantes e responsáveis.
No ano passado quase não houve semana sem episódios da guerra no campo: 43 assassinatos (segundo a Comissão Pastoral da Terra, sendo 20 no Pará), agressões a trabalhadores, ameaças
de morte a juízes, promotores e defensores de direitos humanos, trabalhadores escravos a resgatar, conflitos de garimpeiros e posseiros com povos indígenas, adiamento de homologações de
terra indígena. A muito custo eram costuradas, para suprir a inércia -para
usarmos um eufemismo- das instituições estaduais, respostas de emergência
a esses crimes com a Ouvidoria Agrária
Nacional (contando com o rigor e dignidade de seu titular, o desembargador
Gercino José da Silva Filho), a Polícia
Federal e o Gabinete de Segurança Institucional. Sem a imediata aprovação da
competência federal para os crimes de
direitos humanos, essa improvisação
estará fadada a continuar.
É hora de matizarmos também a atual
temporada de caça ao MST e aos trabalhadores rurais. Inegável reconhecer
que o MST, da mesma forma que a Contag, com sua militância, suas escolas,
seus projetos culturais, a luta pelos direitos dos trabalhadores, aumentou a
auto-estima e restaurou a dignidade dos
trabalhadores rurais escorraçados faz
século, suas famílias e crianças alvos
permanentes da violência. É inegável
que essa mobilização ajuda a mudança.
Numa sociedade como a nossa, com
sesquipedais disparidades e racismo estrutural, sem pressão não há transformação. Não nos impressionemos com a
iconografia do MST ou com o anacronismo de um discurso que às vezes se
pretende revolucionário. Qualquer análise histórica mostra que a revolução
não está -nem estará- na ordem do
dia. Façamos um esforço para entender
a lógica da ação do MST além das aparências e não dar bobeira de alarme falso de democracia em risco.
O MST é um enorme desafio para o
constitucionalismo democrático, e haja
molejo dialético para enfrentar suas táticas de ocupação de terras, invasão de
repartições públicas, sequestro de funcionários estatais, saques. Um governo,
mesmo consciente de que o Estado de
Direito pende mais para a defesa dos
proprietários que para a dos trabalhadores rurais, não pode ficar acuado.
Mas repressão apenas não vai ajudar
muito; não fazer nada também não, daí
a importância de manter o equilíbrio
diante das partes em conflito, negociar,
fazer baixar a tensão e a violência e atender as reivindicações dos que não têm
terra nem direitos.
Nada resta à sociedade civil senão lutar pelas enormes tarefas que o Estado
federal deve implementar para uma efetiva paz nos campos: proibir a comercialização de armas, implementar logo
uma reforma do Judiciário e das polícias, destinar mais recursos ao Ministério Público, aumentar dramaticamente
os efetivos da Polícia Federal, superar a
burocracia das desapropriações de terras (e homologação de terras indígenas). E recusemo-nos a fazer figuração
nesse falso embate entre os fazendeiros
"pacíficos" e os sem-terra "violentos".
Paulo Sérgio Pinheiro, 59, é expert independente das Nações Unidas para a Violência contra
a Criança. Foi secretário de Estado de Direitos
Humanos (governo Fernando Henrique).
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