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São Paulo, sábado, 12 de julho de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O MST é uma ameaça à democracia?

NÃO

A doce paz dos campos

PAULO SÉRGIO PINHEIRO

Quem ouve a zoeira em torno da audiência do presidente da República com o MST fica com a impressão de que reina nos campos uma paz infinita. Nada mais enganador. Faz tempo predomina em alguns Estados do Norte, Nordeste e Centro-Oeste guerra imposta por fazendeiros, seus jagunços ou empresas de segurança, armados até os dentes, muita vez em conluio com os aparelhos estatais. Atribuir toda a responsabilidade pela violência no campo aos sem-terra é jogo de cena.
É evidente que, no Estado democrático, o monopólio da violência física no Estado exige que todos os particulares se desarmem -não só os sem-terra, fazendeiros e jagunços também. Mas deixemos de patinar nessa baboseira da falsa indignação da grande lavoura com a violência que ela gostosamente alimenta. Está na hora de desvendar a pesada rede de interesses que une fazendeiros à chamada bancada ruralista, com as polícias Civil e Militar nos Estados, a alguns juízes locais, sem falar das prebendas que colam recorrentemente os apoios de bancadas estaduais ao governo federal. Essa poderosa rede faz com que toda operação de desarmamento no campo desde 1985 comece com pirotecnia e acabe envergonhada qual bombinha de são João.
Essa dificuldade do desarmamento nos campos corresponde a igual incapacidade do Estado democrático de coibir a circulação de armas de fogo. O Brasil tem a segunda taxa de homicídio das Américas, por volta de 24 homicídios por 100 mil habitantes ao ano, em esmagadora maioria cometidos com armas de fogo. A proibição de sua comercialização é providência urgente. A principal responsabilidade por essa carnificina e pelas vítimas continuará a caber aos parlamentares se não legislarem logo a respeito.
O armamento é apenas o aspecto mais visível do conflito. A guerra no campo é alimentada pelo "Não-Estado de Direito" engendrado pelo mau funcionamento do Poder Judiciário. A Justiça, extremamente ágil em conceder liminares de integração de posse e determinar despejos no caso de ocupações, mostra-se extremamente lenta quando se trata de julgar e punir os assassinatos e outras formas de violência contra os trabalhadores rurais. Há enorme dificuldade para identificar mandantes e responsáveis.
No ano passado quase não houve semana sem episódios da guerra no campo: 43 assassinatos (segundo a Comissão Pastoral da Terra, sendo 20 no Pará), agressões a trabalhadores, ameaças de morte a juízes, promotores e defensores de direitos humanos, trabalhadores escravos a resgatar, conflitos de garimpeiros e posseiros com povos indígenas, adiamento de homologações de terra indígena. A muito custo eram costuradas, para suprir a inércia -para usarmos um eufemismo- das instituições estaduais, respostas de emergência a esses crimes com a Ouvidoria Agrária Nacional (contando com o rigor e dignidade de seu titular, o desembargador Gercino José da Silva Filho), a Polícia Federal e o Gabinete de Segurança Institucional. Sem a imediata aprovação da competência federal para os crimes de direitos humanos, essa improvisação estará fadada a continuar.
É hora de matizarmos também a atual temporada de caça ao MST e aos trabalhadores rurais. Inegável reconhecer que o MST, da mesma forma que a Contag, com sua militância, suas escolas, seus projetos culturais, a luta pelos direitos dos trabalhadores, aumentou a auto-estima e restaurou a dignidade dos trabalhadores rurais escorraçados faz século, suas famílias e crianças alvos permanentes da violência. É inegável que essa mobilização ajuda a mudança. Numa sociedade como a nossa, com sesquipedais disparidades e racismo estrutural, sem pressão não há transformação. Não nos impressionemos com a iconografia do MST ou com o anacronismo de um discurso que às vezes se pretende revolucionário. Qualquer análise histórica mostra que a revolução não está -nem estará- na ordem do dia. Façamos um esforço para entender a lógica da ação do MST além das aparências e não dar bobeira de alarme falso de democracia em risco.
O MST é um enorme desafio para o constitucionalismo democrático, e haja molejo dialético para enfrentar suas táticas de ocupação de terras, invasão de repartições públicas, sequestro de funcionários estatais, saques. Um governo, mesmo consciente de que o Estado de Direito pende mais para a defesa dos proprietários que para a dos trabalhadores rurais, não pode ficar acuado. Mas repressão apenas não vai ajudar muito; não fazer nada também não, daí a importância de manter o equilíbrio diante das partes em conflito, negociar, fazer baixar a tensão e a violência e atender as reivindicações dos que não têm terra nem direitos.
Nada resta à sociedade civil senão lutar pelas enormes tarefas que o Estado federal deve implementar para uma efetiva paz nos campos: proibir a comercialização de armas, implementar logo uma reforma do Judiciário e das polícias, destinar mais recursos ao Ministério Público, aumentar dramaticamente os efetivos da Polícia Federal, superar a burocracia das desapropriações de terras (e homologação de terras indígenas). E recusemo-nos a fazer figuração nesse falso embate entre os fazendeiros "pacíficos" e os sem-terra "violentos".


Paulo Sérgio Pinheiro, 59, é expert independente das Nações Unidas para a Violência contra a Criança. Foi secretário de Estado de Direitos Humanos (governo Fernando Henrique).


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