São Paulo, terça-feira, 12 de agosto de 2008

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MARCOS NOBRE

Homenagens e ideologias

JOÃO GILBERTO não agüenta mais ouvir falar de bossa nova.
João Donato idem. É o eterno problema das homenagens: ninguém gosta de se ver enclausurado no passado, como se não tivesse continuado a viver e a ter novas experiências.
Ainda mais porque não se trata de uma pessoa ou instituição, mas de um determinado jeito, de uma determinada bossa. Dá para ouvir alguma coisa e dizer: "é bossa nova". Mas não dá para definir.
As homenagens resolveram que a bossa nova nasceu em 1958, com a gravação e a distribuição do compacto com "Chega de Saudade" e "Bim Bom". E, mais significativo, fixaram a bossa nova naqueles seus primeiros anos.
Ficou estabelecido que a BN foi a música do desenvolvimentismo dos anos JK. Que era utopia de uma modernização suave. Uma imagem que ficou pendurada no ar depois da ruptura brutal do golpe militar de 1964.
Isso tem algo de verdade, com certeza. Só que diz mais sobre o momento atual do que sobre a própria BN. Tem a ver com as comemorações da obtenção do "grau de investimento" e com a celebração de uma "classe média" em expansão. É como se o país tivesse retomado aquela modernização sem sustos. Como se a nova classe média fosse aquela que produzia e consumia BN há 50 anos.
Como toda celebração ideológica, essa também tem algo de verdadeiro. Mesmo sabendo que "grau de investimento" e "nova classe média" não passam de carros alegóricos e que os passistas continuam mesmo é no chão da avenida. É que a BN realizou nosso "ajuste cultural" muito antes do nosso "ajuste econômico internacional".
O que se fez em termos musicais vai muito além do quadro "nacional-desenvolvimentista" em que o país ficou preso por cinco décadas.
Com seus arranjos, Radamés Gnattali vestiu o samba de casaca já na década de 1940 nas transmissões da Rádio Nacional. Esse primeiro grande passo ganhou um sentido inteiramente novo com o trabalho de Tom Jobim e a famosa batida de João Gilberto: criou um quadro musical flexível o suficiente para permitir incorporar o que de melhor se fazia fora do Brasil.
Fixar a BN nos seus inícios esconde a transformação que significou o surgimento do rótulo "música popular brasileira" na década de 1960. Afinal, foi a recriação dos ritmos afro-brasileiros e a abertura da BN para toda a sorte de influências que permitiu o surgimento de uma música que podia receber sem medo não só o jazz e o impressionismo mas também o rock, o reggae e muito mais.
Criamos uma música muito melhor do que o país que conseguimos construir. É isso o que celebramos na bossa nova.

nobre.a2@uol.com.br


MARCOS NOBRE escreve às terças-feiras nesta coluna.


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