São Paulo, terça-feira, 12 de setembro de 2000

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Defesa da honra: tese superada?


Associa-se a tese da legítima defesa da honra à da violenta emoção; pode-se dizer que hoje uma é sucessora da outra


SILVIA PIMENTEL e
VALÉRIA PANDJIARJIAN


A excelência dos artigos de Luiza Nagib Eluf ("Homens que matam", 30/8, "Tendências/Debates") e do articulista Clóvis Rossi (31/8, pág. A2), publicados nesta Folha, merece nossos cumprimentos. Merece também, pela relevância de um dos temas abordados -superação da tese da legítima defesa da honra-, maiores considerações.
O Código Penal brasileiro estabelece que age em legítima defesa quem, usando de meios necessários, com moderação, reage a injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de terceiro. A legítima defesa é uma das causas excludentes da ilicitude de um ato. A doutrina e a jurisprudência, de forma consensual, entendem que todo bem jurídico pode ser defendido legitimamente, incluindo-se a honra. Entretanto não há consenso em relação ao uso dessa figura nos casos em que o homicídio é praticado para defender suposta honra por parte de cônjuge, concubino, companheiro ou namorado traído.
No final da década de 70, o movimento brasileiro de mulheres mobilizou-se contra a tradicional invocação da tese da legítima defesa da honra nos crimes passionais, criando, como símbolo de memorável campanha nacional, o slogan "Quem ama não mata".
Devido à ausência de estudos empíricos, não se pode avaliar, com precisão, em que medida ainda hoje essa tese tem sido invocada e acolhida pelos tribunais de júri (órgãos soberanos para julgar crimes dolosos contra a vida). Constata-se que, em grau de recurso, os tribunais superiores ainda apresentam divergências, embora, na maioria das vezes, não admitam a legítima defesa da honra.
Em 15 acórdãos publicados pelas principais revistas de jurisprudência do país de 1988 a 1998, houve o uso de argumentos referentes à legítima defesa da honra em casos de lesões e homicídios praticados contra mulheres por seus companheiros. Em dois casos houve acolhimento da tese; em outros dois, embora teoricamente admitida, a tese não foi aplicada e, em 11 casos, a tese não foi acolhida.
Os dois casos em que houve acolhimento da legítima defesa da honra, surpreendentemente, referem-se a decisões em grau de recurso no Estado de São Paulo. O primeiro, de 1990, num crime de lesão corporal e o segundo, de 1995, num homicídio. No último, o crime praticado pelo marido traído foi entendido como a única forma de ele evitar que sua honra ficasse indelevelmente comprometida. E mais, o homicida foi considerado "um verdadeiro instrumento da própria sociedade", agindo não apenas punitiva, mas preventivamente.
Contudo vale lembrar a decisão do Superior Tribunal de Justiça, de 1991, que rejeitou a legítima defesa da honra e determinou novo julgamento pelo Tribunal do Júri de Apucarana (PR) do réu que matou a mulher e seu amante. Argumento decisivo foi o de que não existe honra conjugal, pois a honra é pessoal e própria. Mesmo nesse caso paradigmático não houve consenso. Voto divergente sustentou a idéia de que a norma jurídica há de ser interpretada culturalmente e que o aspecto cultural há de ser considerado de acordo com o lugar do fato. Sustentou, ainda, que não se poderia dizer, nesse caso, que o Tribunal do Júri "tenha errado", mas, sim, que "julgou mal", apenas "manifestando uma cultura brasileira". Em novo julgamento, o réu de Apucarana foi absolvido.
Hoje, São Paulo defronta-se com um lamentável episódio que vem recebendo tratamento similar àqueles que julgávamos quase superados. Preconiza-se, mais uma vez, justificar um homicídio passional ao desqualificar moralmente a vítima e ao deixar nas entrelinhas que ela "bem fez por merecer". O cenário está montado para transformar a mulher vítima de um crime de homicídio em ré. A imagem da jornalista assassinada em Ibiúna no dia 20 de agosto está sendo (re)construída de forma tal a "justificar", no imaginário social, a violência do crime do ex-namorado.
Conhecedor do desprestígio atual da tese da legítima defesa da honra, o ilustre advogado do acusado recorre à figura da "violenta emoção", mais aceita em nossos tribunais para os crimes de paixão, com o fim de tipificar o homicídio como privilegiado. Embora não se configure como excludente de criminalidade tal qual a legítima defesa da honra, a alegada violenta emoção caracterizaria, no caso, o homicídio privilegiado, com diminuição da pena de um sexto a um terço daquela prevista para o homicídio simples (reclusão de 6 a 20 anos).
É visível a associação entre a tese da legítima defesa da honra e a tese da violenta emoção. Pode-se até dizer que, nesta década, a tese da violenta emoção é a sucessora e/ou supletiva da tese da legítima defesa da honra.
Importa consignar o repúdio a toda e qualquer forma de abordagem que sirva a macular a imagem da vítima ou a justificar o crime a partir de um julgamento moral de seu comportamento. Ao ser apresentada como aquela que teria traído amorosa e profissionalmente seu companheiro/chefe, pessoa tida como séria e dedicada a ela, referências desabonadoras e adjetivos pejorativos têm sido imputados, ora de forma explícita, ora sutilmente implícita, à sua moralidade e à sua competência profissional.
Quando pensávamos que a utilização da tese da legítima defesa da honra para crimes passionais estava quase sepultada, vemos o seu ressurgimento, agora sob uma outra rubrica.
Assim sendo, seja pela posição, por vezes ainda adotada pelos tribunais brasileiros, seja pelas argumentações que ressurgem em torno do fatídico episódio que hoje mobiliza a sociedade brasileira, é temeroso dar-se por superada a defesa da honra em crimes passionais.


Silvia Pimentel, 60, professora da Faculdade de Direito da PUC-SP, é coordenadora nacional do Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (Cladem-Brasil).
Valéria Pandjiarjian, 31, advogada e pesquisadora, é membro do Cladem-Brasil e do Instituto para a Promoção da Equidade (Ipê).




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