São Paulo, quinta-feira, 12 de setembro de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Cidadania de Deus

MILÚ VILLELA

É impossível assistir ao filme "Cidade de Deus" sem se contorcer na poltrona e constatar, com constrangimento, que o Brasil que emerge da tela, bruto, intolerável, é resultado unicamente do que deixamos de fazer ao longo dos últimos 40 anos.
O descaso com a miséria, a falta de programas de promoção da cidadania, o afrouxamento das políticas públicas destinadas a reduzir os contrastes sociais, a letargia dos governos, dos políticos, das empresas e da sociedade civil diante da degradação da perspectiva de vida de milhares de jovens em todo o país não poderiam ter gerado resultado diferente daquele exposto por Fernando Meirelles em seu longa-metragem.
Não resta dúvida de que a sociedade deu sua contribuição para que surgissem nas grandes cidades brasileiras personagens do quilate de Zé Pequeno, o traficante abominável que retrata no filme, alegoricamente, a construção da violência em nosso país.
Estruturamos no Brasil um apartheid econômico de efeitos intoleráveis. Produzimos aceleradamente condições macroeconômicas para que 50 milhões de pessoas fossem despejadas no fosso da miséria num intervalo de quatro décadas, perpetuando e ampliando o desequilíbrio estrutural que nos acompanha desde o descobrimento.
Neste curto período da nossa história, construímos dois países absolutamente distintos: um que consome, que trabalha, que estuda, que gera e dispõe de renda, que conta com estrutura e acesso ao Estado de Direito e à cidadania. E outro, equivalente a uma Argentina e meia, que passa ao largo desse "luxo".
Não poderíamos estar vivendo outra realidade. A violência que nos põe em estado de alerta permanente, que nos assusta toda vez que saímos de casa, que praticamente decreta o estado de sítio para famílias inteiras que vivem em bolsões de miséria dominados pelo crime não deve causar surpresa. Estávamos diante do ovo da serpente e ignoramos sistematicamente o problema.
Que alternativas, afinal, a sociedade ofereceu no passado e está oferecendo agora aos meninos e meninas de periferia para que escapem do círculo da miséria a que estão circunscritos? Que caminhos podemos estruturar para que eles encontrem, fora do tráfico e do crime, brechas para "escapar" do contexto perverso a que estão submetidos? Estas são as perguntas cruciais que devemos nos fazer diante do quadro que aí está.


Não podemos esperar que as soluções para os problemas coletivos partam exclusivamente dos governos


O filme de Fernando Meirelles, baseado no livro de Paulo Lins, não deve ser apenas mote para artigos como este e tema para conversas culturais. A situação-limite que "Cidade de Deus" retrata deve ser um convite irrecusável para nos colocarmos em movimento.
A sociedade civil, mais do que nunca, deve dar sua contribuição para transformar a realidade brasileira. Empresas, executivos, profissionais liberais, estudantes, trabalhadores de todos os segmentos podem colocar energia, competências e recursos à disposição da coletividade. Há milhares de projetos esperando para ser abraçados.
As iniciativas voluntárias hoje em andamento, o trabalho desenvolvido pelas ONGs e pela iniciativa privada nos estimulam a pensar que podemos, sim, transformar o país e abrir perspectivas incríveis sem depender de ações governamentais. Basta visitar projetos espalhados em todo país para ver que muitas crianças e adolescentes já podem vislumbrar um futuro melhor, simplesmente porque a sociedade decidiu acolhê-los.
Não tenho dúvidas. Implantem escolas de qualidade nos bairros carentes. Estruturem lazer saudável e construtivo para as crianças que ali estão. Abram cursos profissionalizantes na região, criem programas de absorção de mão-de-obra com empresas parceiras e pronto. Teremos dado o primeiro passo para tirar do crime a primazia sobre este território que hoje figura como temerário no imaginário brasileiro. Esta situação hipotética não é impossível e pode ser multiplicada.
Pesquisa do Ipea nos mostra que as empresas investem quase R$ 5 bilhões ao ano em projetos sociais no Brasil. Para sairmos do estado em que nos encontramos, precisamos investir muito mais. E o podemos fazer, se houver consciência e estímulo adequado.
Embora seja necessário continuar cobrando firmemente políticas públicas de alto impacto social e se coloque como absolutamente vital retomarmos o crescimento econômico para criar os empregos que a sociedade demanda, não podemos mais esperar que as soluções para os problemas coletivos partam exclusivamente dos governos.
A sociedade não pode mais dar as costas ao Brasil real; e deve se envolver na luta para a promoção da cidadania.


Milú Villela, 56, empresária, é presidente do Faça Parte - Instituto Brasil Voluntário, do Museu de Arte Moderna de São Paulo e do Instituto Cultural Itaú.



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