São Paulo, terça-feira, 12 de outubro de 2004

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ROBERTO MANGABEIRA UNGER

Social-democracia

O discurso político dominante no Brasil hoje é o da social-democracia européia. Na Europa, porém, fica cada vez mais patente a insuficiência da fórmula social-democrata para lidar com os problemas atuais. Mais razão para concluir que está errado o subtexto da política brasileira. O que definiu a formação da social-democracia no curso do século 20 foi o abandono da tentativa de reorganizar o Estado e o mercado em favor da adoção de políticas de redistribuição econômica e proteção social. Políticas que humanizariam as instituições que os social-democratas deixaram de contestar.
Começa-se a compreender que essa troca de passividade institucional por compensação social não funciona. E que, mesmo quando funciona, não basta. Se não funciona ou não basta para os europeus, muito menos pode funcionar ou bastar para nós, dadas as vastas desigualdades em que estamos afundados. Os europeus têm de reorganizar a economia e a política. Nós também, mas com maior urgência.
Em todas as sociais-democracias européias, a base social de acesso aos setores avançados da produção e do ensino se estreitou a tal ponto que só pequena minoria consegue ascender a eles. As maiorias, ainda quando protegidas contra a insegurança econômica, estão condenadas a empregos rotineiros, sem futuro. Um dos corolários é o ônus insustentável que se impõe às finanças públicas, obrigadas a atenuar as conseqüências de desigualdades estruturais avassaladoras. Seria preciso construir novo repertório de formas de colaboração entre os governos e a iniciativa privada para ampliar o acesso aos setores de vanguarda. E para difundir as práticas econômicas vanguardistas, marcadas por experimentalismo radical e inovação permanente.
Em todas as sociais-democracias européias, os vínculos entre os indivíduos se enfraquecem. As pessoas pertencem a quatro mundos que não se conhecem: o das empresas e das escolas mais adiantadas, o das antigas indústrias e dos pequenos empreendimentos tradicionais, o dos serviços que cuidam dos jovens e inválidos e o dos trabalhadores desempregados ou temporários, muitos deles estrangeiros sem direito e sem respeito. O compromisso social se reduz à obrigação de contribuir, por meio de impostos elevados, ao financiamento dos direitos sociais, como se transferências de dinheiro bastassem para assegurar coesão social. Para assegurá-la, todo adulto capaz, além de trabalhar no sistema produtivo, haveria de desempenhar tarefa social, ajudando a cuidar de quem não possa cuidar de si. Os mundos distanciados teriam de encontrar-se.
Em todas as sociais-democracias européias, a vida se apequena. Havia grandeza na guerra, misturada com selvageria. Agora na paz há comodidade com pequenez. Grandeza sem guerra? Só com educação que forme resistentes e construtores. E com Estado que ajude os cidadãos a atuar, como empreendedores, prestadores de serviços ou voluntários, em todo o mundo. A globalização de atividades e de ambições abriria horizontes e intensificaria ambições, transformando a vida nacional das sociedades mais educadas e ricas.
A social-democracia européia é um ídolo de barro. Em vez de adorá-lo, tratemos de evitar seus erros. A política social serve para capacitar os cidadãos; ela não substitui a democratização do mercado e o aprofundamento da democracia. Não precisamos de açúcar. Precisamos de reconstrução.


Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.
www.law.harvard.edu/unger


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