UOL




São Paulo, quarta-feira, 12 de novembro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

O preço da folia

DEMÉTRIO MAGNOLI

Riordan Roett, diretor da Universidade Johns Hopkins, não tem cargo na administração Bush. Mas ele expressava a mensagem da Casa Branca quando se pronunciou no colóquio anual do Instituto para o Desenvolvimento Empresarial Argentino (Idea). Frases curtas, voz metálica, ironias grosseiras: Roett passou um pito no PIB argentino reunido em Mar del Plata, num painel que precedia a exposição de Martín Redrado, o secretário de Comércio e Relações Internacionais.
Primeiro, com base nos indicadores de competitividade do Fórum Econômico de Davos, desancou o modelo econômico e social do país, obliterando o fato de que a decadência produtiva argentina acelerou-se justamente na "era Menem", tão festejada em Washington. Segundo, partiu para a ameaça, escolhendo o Brasil como alvo. Explicou que a administração Bush não reconhece meios tons e que, nos altos círculos republicanos, está se configurando a imagem de um "eixo do mal latino-americano", constituído por Fidel Castro, Hugo Chávez e Lula. Que o lugar dos países do Cone Sul é no "hemisfério". Que o governo Lula boicota a Alca e a Rodada de Doha da OMC por razões ideológicas. E que chegou a hora da decisão: a Argentina está com a Alca ou com o Brasil?
Essa mensagem circula há semanas nos corredores diplomáticos e nos foros políticos e empresariais do continente. Está surtindo o efeito desejado: Brasil e Argentina já rascunham ofertas sobre os itens de investimentos e serviços na Alca, desobstruindo o caminho para o "sucesso" da cúpula de Miami. O recuo é admitido abertamente pela diplomacia argentina, o que ainda não ocorre no Itamaraty.
Retroceder paulatinamente, resmungando, bufando e tentando iludir o público interno, é a "tática" brasileira nas negociações hemisféricas. Havia meses, o Brasil propunha adiar o prazo final da Alca para 2007, a fim de obter avanços prévios no tema agrícola na OMC. Lula foi a Washington e firmou um documento de capitulação, comprometendo-se com o prazo de 2005. Em seguida, o chanceler Celso Amorim garantiu que, diante do veto americano a negociações de subsídios e regras antidumping na Alca, o Brasil retirava da mesa os temas de serviços, investimentos, patentes e compras governamentais. Agora, o Itamaraty ultrapassa essa fronteira, torcendo para que o protecionismo extremado americano, em ano eleitoral, forneça uma janela de escape.


Retroceder paulatinamente, tentando iludir o público interno, é a "tática" brasileira nas negociações hemisféricas
A Alca, tal como forjada na usina de Washington, não é um acordo de livre comércio. O modelo da "Alca americana" é o Nafta, mas sem as medidas de acesso a mercados deste. O que sobra é uma carta de direitos extraordinários das corporações americanas. Por que o Itamaraty se curva diante disso, quando a administração Bush entra no seu crepúsculo e há perspectivas reais de uma troca de comando na Casa Branca?
A política externa do governo Lula tem seu foco no público interno, prefere a forma ao conteúdo e deleita-se com a luz dos holofotes. A obsessão pela influência mundial traduziu-se na campanha por uma cadeira de membro permanente no Conselho de Segurança da ONU. Os compromissos ideológicos da direção petista exprimiram-se na "operação Cuba". Lula introduziu no discurso diplomático a reivindicação explícita da "liderança natural" brasileira na América do Sul, uma velha cantiga da geopolítica militar.
Toda essa folia sabota as chances brasileiras de exercer influência positiva na América do Sul. A campanha pela cadeira no CS está fora de lugar. Ela atrapalha as iniciativas positivas e ousadas, como o G20 na OMC e a "abertura para a África". Algumas potências européias emitem declarações protocolares de "simpatia", que carecem de implicação prática pelo simples fato de que o tema não está em debate na ONU.
Constrangidos pelas insistentes solicitações do Itamaraty, países latino-americanos e africanos expressam "apoio" à pretensão brasileira apenas para consolidar relações políticas e comerciais com um país da importância do Brasil. Na Argentina, contudo, a oposição à ambição brasileira é o único consenso nacional e funciona como poderoso argumento dos que preferem se alinhar com a "Alca americana".
A confraternização com Fidel Castro, que serviu como operação de cobertura das violações dos direitos humanos em Cuba, desacredita a coerência da diplomacia brasileira e o compromisso formal do Mercosul com a democracia. Ao lado das arrogantes proclamações de "liderança natural" e da obsessiva campanha pela cadeira no conselho, forma um obstáculo quase intransponível para o aprofundamento da cooperação política regional.
Na região, da Venezuela à Argentina, passando pela Bolívia e pelo Equador, há uma onda incontrolável de insatisfação com a agenda política e econômica da administração Bush. A Organização dos Estados Americanos tornou-se um cadáver em adiantado estágio de putrefação. Existe uma janela de oportunidade histórica para a construção de uma organização sul-americana de segurança e cooperação, assentada sobre o princípio da democracia e capaz de enfrentar os desafios do narcotráfico e dos conflitos guerrilheiros. Mas o Brasil, única liderança disponível para esse empreendimento, prefere praticar uma diplomacia declamatória que flerta com a arrogância.
Bush não acredita, seriamente, no "eixo do mal latino-americano". Seus porta-vozes oficiosos manipulam essa noção absurda como capangas contratados para cobrar dívidas. Eles estão dizendo que a "Alca americana" é o preço que o Brasil deve pagar pelo direito à folia. O Brasil já sacou o talão de cheques.

Demétrio Magnoli, 44, doutor em geografia humana, é editor do jornal "Mundo - Geografia e Política Internacional" e pesquisador do Nadd-USP.


Texto Anterior: Frases

Próximo Texto: Amaury Castanho: João Paulo 2º e a igreja no Brasil

Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.