São Paulo, quinta-feira, 12 de dezembro de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

PAULO SÉRGIO PINHEIRO

Direitos humanos: claro-escuro

Balanços são enfadonhos e, pior, suspeitos se alguém fala em causa própria, como é o caso aqui. Portanto cuidado para não cair nessa armadilha.
Qual é a situação dos direitos humanos no Brasil, nesses oitos anos do governo Fernando Henrique? Houve avanços, recuos ou tudo permaneceu estagnado? Na luta pelos direitos humanos, pouco adianta fazer simplificações delirantes, distribuir notas, atirando nos próprios pés ao tratar o governo eleito como se fora continuidade da ditadura. Nessa área, reconheçamos, o que prevalece é o "chiaroscuro".
O Estado democrático, mesmo que não seja o governo dos sonhos (ou partido), é aliado da sociedade civil. O Estado é muitas vezes dos maiores perpetradores -vide os matadores nas polícias militares, em alguns Estados da Federação. Mas, paradoxalmente, esse mesmo Estado está obrigado a promover e proteger os direitos humanos.
Em termos de direitos políticos, não temos nenhum déficit. Alguma violência aqui e ali, pouquíssima fraude, controle frouxo do poder econômico, mas eleitorado informadíssimo. O governo reconheceu os mortos e desaparecidos, indenizou famílias, reintegrou anistiados, compensou-os. Problemão mesmo continuam a ser os direitos civis. Quando se ler o Segundo Relatório Nacional de Direitos Humanos do governo federal (que sai dia 27/12 e não difere nada dos que saíram até agora), ver-se-á que em todos os Estados há violações graves no acesso à Justiça, assistência jurídica quase nula, atuação incompetente das polícias, limitações do Ministério Público, tortura rotineira, principalmente nas delegacias e instituições de controle de crianças e jovens.
E o Legislativo não votou a competência federal nos crimes de direitos humanos, o que deixa o Estado federal desdentado para fazer cumprir as obrigações internacionais que assumiu quando instituições nas unidades da Federação não coibem a impunidade (faz dez anos que policiais assassinaram 111 presos no Carandiru, e estão impunes).
A novidade é que, ao lado desse festival de horrores, há muitas inovações e boas práticas. A sociedade civil está muito mais forte do que antes. A política de governo de direitos humanos, que existe desde a volta ao governo civil, em 1985, transformou-se nesses oito anos em política de Estado. Nos 27 Estados da Federação, autoridades em todos os poderes e instituições, identificados com os direitos humanos, também colaboraram intensamente. Não é animador ver o governador Geraldo Alckmin desativar o Carandiru?


Ao lado desse festival de horrores, há muitas inovações e boas práticas. A sociedade civil está muito mais forte


Nesses últimos anos aumentou enormemente a institucionalização dos direitos humanos. Inclusive no que diz respeito às convenções internacionais, como o acesso por meio de petições individuais na ONU. Pois bem, depois de trabalheira enorme, aí vem a cantilena "assinar tratado não significa nada". O Brasil estendeu um convite aberto para os relatores especiais de direitos humanos virem aqui sem precisar de autorização "jogo-de-cena-para-a-galera".
Bobagem pura essas ranhetices: para as vítimas, ratificar tratados fortalece a luta por seus direitos. Foram feitos dois Programas Nacionais de Direitos Humanos (só 13 outros países o fizeram), com enorme mobilização da sociedade civil. Senhoritos mal-humorados proferem: "Nada saiu do papel". Porque não se deram ao trabalho de verificar.
Mais de 1.300 parcerias, somente na Secretaria de Estado dos Direitos Humanos, para implementar metas dos PNDH com instituições públicas e ONGs em todos os Estados, em sete anos. Os céticos não perceberam que os PNDH aprofundam as possibilidades de comprometimento do Estado.
E os direitos econômicos e sociais? Na perspectiva das vítimas, aqueles que estão no rodapé da exploração, diferentemente das avaliações maniqueístas e maximalistas, qualquer avanço, por mais limitado que seja, conta. É claro que o índice de desenvolvimento em vários Estados está abaixo da média nacional. Podia ser melhor? Claro que podia, e a lua também poderia ser azul.
Se há algo "clean" no mundo, é a ONU, com Prêmio Nobel e tudo. Se o Brasil e o presidente Fernando Henrique ganharam um prêmio pela presença e implementação da temática do desenvolvimento social em suas políticas, o pessoal da ONU e do Programa das Nações para o Desenvolvimento, o PNUD, deve ter achado algum valor no que aqui foi feito na melhoria de indicadores de pobreza, mortalidade, alfabetização, escolarização.
Pela primeira vez, em 113 anos de República, reconheceram-se os crimes do racismo estrutural que vigem contra os afrodescendentes, do trabalho escravo e do trabalho infantil. E foram implementadas políticas para combater esses crimes. Falta muito? Falta, mas antes era neca, zero. Impôs-se no Brasil a plena transparência e aceitação do monitoramento, praticada pelos próprios órgãos de governo, como o IBGE e o Ipea.
Para terminar, uma parábola. Foi na Sétima Conferência Nacional de Direitos Humanos, na Câmara dos Deputados, em maio. A abertura, repleta de militantes de direitos humanos, homenageava um militante emblemático, no vigor dos seus 80 anos, Hélio Bicudo.
De repente, irrompe um candidato à Presidência. Vai para o pódio e durante dez minutos dispara: "Tem muita gente aí criticando as 518 propostas do PNDH 2 e dizendo que este governo está contraindo dívidas para o futuro governo. Abençoadas dívidas. A política de direitos humanos do presidente Fernando Henrique é uma política de Estado e, como tal, tem de ser apoiada e seguida".
Era o hoje presidente eleito do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva.

Paulo Sérgio Pinheiro, 58, professor titular de ciência política da USP e coordenador licenciado do Núcleo de Estudos da Violência da universidade, é secretário de Estado dos Direitos Humanos do governo federal.


Texto Anterior: Frases

Próximo Texto: Roberto Romano: Ciência e tempo

Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.